Os sentidos produzidos pelo termo ignorância apontam para algo que falta a alguém, que lhe é desconhecido. No discurso lexicográfico, encontramos ignorância como “estado daquele que ignora algo, que não está a par da existência de alguma coisa; estado daquele que não tem conhecimento, cultura, em virtude da falta de estudo, experiência ou prática” (Houaiss online). Enquanto um estado de um sujeito, a ignorância também aponta para outras instâncias que o significam, o identificam e o classificam em função dessa falta: “estado social no qual a instrução, a cultura é extremamente precária; atitude grosseira, grosseria, incivilidade” (idem). E, ao mesmo tempo, indica a presença de um outro sujeito que sabe o que falta ao ignorante, e que é capaz de identificar essa falta e de preenchê-la. Este saber lexicográfico coloca, em questão, a relação com a alteridade, a relação entre a barbárie e a civilização, entre a igualdade e a desigualdade, que formam todo um dispositivo social fundado no conhecimento, no saber-fazer escolar.
Essa subjetividade, a do sujeito ignorante, está, sobretudo, associada às letras (Silva, 1996) e a domínios de saber a elas associado, como o das leis, dos costumes, dos comportamentos, da verdade, da razão. Assim, o sujeito ignorante é significado também como “incompetente, inexperiente, mal-educado, pretensioso, presunçoso, bronco”; e, ainda, “sem malícia, puro, inocente”, ou seja, que não é capaz de fazer julgamentos verdadeiros e adequados, de compreender o mundo que o cerca, a sociedade em que vive, dada a sua “ingenuidade excessiva” (idem), precisando ser ensinado, conscientizado. Assim, temos alguns provérbios, como “A ignorância do bem é a causa do mal” e “A ignorância é má conselheira”.
Os contrários também se atraem nessa rede semântica que se tece com o termo ignorância. “O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual” é o título de um livro de Jacques Rancière (2013) que, a partir da experiência pedagógica inusitada de Joseph Jacotot, no século XIX, discute e analisa, da perspectiva filosófica e política, o ensinar-aprender; o lugar de quem sabe reservado ao mestre e o lugar de quem ignora algo (ou tudo?) reservado ao aluno; “a maneira pela qual a Escola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma à outra, reproduzindo, assim, indefinidamente,o pressuposto desigualitário, em sua própria denegação” (Idem, ibidem, p. 15).
Outros discursos, como o literário, lançam novos sentidos nessa rede. Milan Kundera, em seu romance “A ignorância” (2002), cuja narrativa gira em torno de personagens que exilaram, voluntariamente ou não, e de seu retorno, tratando de temas como a ausência, a memória, o esquecimento, o estranhamento face ao conhecido, faz, inicialmente, todo um percurso semântico relacionando os termos “retorno”, “nostalgia”, “ignorância”. Em grego, ele diz, retorno se diz nóstos. Álgos significa sofrimento. A nostalgia é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar” (p. 9). E passando por outras palavras em outras línguas – “añoranza” em espanhol; “saudade” em português, por exemplo –, irá afirmar que “À luz dessa etimologia, a nostalgia surge como o sofrimento da ignorância” (p. 10).
Riobaldo, personagem de “Grande sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa (1986), também trabalha esse espaço de opacidade do (des)conhecer.
Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mesmo, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. [...] Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (Rosa, 1986, pp. 13-14).
Essa polissemia do termo, que se apresenta como evidente, pode ser compreendida como um trabalho de determinação (Haroche, 1992), que se dá pelo preenchimento do lugar do complemento: seja do substantivo “ignorância” (de quê?), do adjetivo “ignorante” (em quê?) ou do verbo “ignorar” (o quê?), colocando em jogo uma exterioridade, o explícito e o implícito. Essa injunção a determinar, gramaticalmente, a palavra ignorância, abre espaços de linguagem para se observar as divisões e desigualdades presentes em uma sociedade, bem como os conflitos e resistências que aí também se constroem. Do quê estamos falando, então, quando falamos de ignorância, quando chamamos alguém de ignorante?
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. / Sou um sujeito letrado em dicionários. / Não tenho que 100 palavras. / Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais ou no Viterbo - / A fim de consertar a minha ignorãça / mas só acrescenta. / Despesas para minha erudição tiro nos almanaques: / -Ser ou não ser, eis a questão. / Ou na porta dos cemitérios: / -Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás. / Ou no verso das folhinhas: / - Conhece-te a ti mesmo. / Ou na boca do povinho: / - Coisa que não acaba no mundo é gente besta. / e pau seco. / Etc / Etc / Etc / Maior que o infinito é a encomenda (Barros, 2001, p. 27).
Referências bibliográficas
BARROS, M. O livro das ignorãças. 10ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2001.
HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. Trad. Eni P. Orlandi. São Paulo: Hucitec, 1992.
KUNDERA, M. A ignorância. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. 3ª edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013
SILVA, M. V. da. O dicionário e o processo de identificação do sujeito- analfabeto. In: GUIMARÃES, E. & ORLANDI, E. P. (Orgs.) Língua e cidadania: o português no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1996, 151-162.