Arquivo com Memória

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Arquivo com Memória

O trabalho de desenvolvimento de um arquivo com memória constitui, dentro do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb), um programa de pesquisa. Trata-se de uma reflexão sobre arquivo, que pensa a relação teórica entre a noção de arquivo e a de interdiscurso. O funcionamento do interdiscurso é o que vai permitir a abertura do sentido, na relação com a estabilidade do arquivo. 

Nessa perspectiva, o arquivo traz em si um traço de memória, que produz uma rede de sentido, sempre aberta a outros sentidos. E que vai produzindo filamentos, criando uma enunciação desterritorializada . É o trabalho da memória sobre o arquivo que põe em movimento sentidos outros.

A proposta é que cada pesquisador do acervo do Centro de Documentação Urbana do Labeurb faça do seu conhecimento parte desse acervo, na medida em que sua interpretação marca um percurso de leitura, constituindo, desse modo, uma cartografia do gesto de ler. 

Conforme mostra Serres, em sua conferência proferida no Sympósium Diderot , não se pode cartografar o conhecimento tal como se cartografa a terra, porque os saberes não são continentes, dos quais se podem demarcar fronteiras, limites. O saber é o mar, é flutuante, contínuo, conexo. Nesse sentido, quando falamos em cartografia de um percurso de leitura, estamos justamente falando de desterritorialidade. Do texto.

Essa cartografia se dá pelo registro dos percursos de pesquisa (através de palavras-chaves) e interpretação do sujeito-leitor, o que, pelo efeito-leitor, o leva à construção de um arquivo de leitura, próprio, fluido, passível de ser sempre outro. O que leva o leitor a construir um seu percurso que forma em si um texto outro. O arquivo vai se constituindo, desse modo, não como algo fechado, empírico, mas como algo passível de desconstrução, sempre aberto a diferentes possibilidades de leitura. Como a teia de Penélope. Penélope ourdissait, sur la lisse, l’atlas qu’Ulysse traversait, à la rame ou à la voile . 

Essa reflexão teórica diz respeito justamente ao esforço no sentido de tornar o documento o real do acontecimento discursivo: aquele que diz respeito ao gesto de ler. Acontecimento este “inscrito no espaço da memória” , porque marca um ato no nível simbólico . 

Imersos no universo da cibercultura, no qual noções de linearidade, estabilidade, cedem lugar àquelas do tracejo, do zigue-zague, o arquivo com memória inaugura um lugar teórico importante no que se refere à organização de centros de documentação e bibliotecas. Há uma mudança na relação sujeito-linguagem, e, portanto, no modo de organização de um arquivo. 

Para nós, analistas de discurso, a importância de construir um arquivo com memória está no fato de que esse tipo de organização de um arquivo nos permite compreender o funcionamento da linguagem na produção de conhecimento que se dá num lugar onde este tem o estatuto da legitimidade científica, ou seja, nos centros de documentação e nas bibliotecas. 

Com os recursos eletrônicos, torna-se possível que um registro, ou, como prefiro chamar, uma cartografia desses percursos de pesquisa, leitura e interpretação, seja criada, através de um software. Nesse sentido, o CEDU desenvolveu uma versão criticamente adaptada do programa micro-isis, o que chamamos de uma versão “com memória”.

Isso quer dizer que o percurso de leitura do pesquisador vai criando uma rede, uma cartografia desse percurso, cuja formulação é a atualização de um virtual. Se o virtual define-se como sendo um complexo problemático, entendemos que um arquivo se constitui de fato quando o pesquisador, pela sua pergunta, gera um movimento de atualização e mobiliza sentidos, pelo processo de criação, dando forma a um conjunto de conhecimentos. Isso porque Chaque connaissance est mobilisée, interprétée, comprise selon les problèmes à résoudre et ceux qui y sont confrontés 

O percurso de leitura de um pesquisador é sempre uma versão dentre as possíveis, frente a um arquivo. É sempre a transformação de uma estrutura (a base de dados), em acontecimento (o percurso).

Na reflexão desenvolvida por Orlandi (2003), o projeto de ler, a autora coloca algumas implicações do que seja esse projeto, dentre elas cita o efeito-leitor, memória, novas leituras de arquivo. Cabe dizer que essas noções são a base daquilo que entendemos arquivo com memória, uma vez que é a maneia como o sujeito lê que vai permitir, pelo efeito metafórico, que a memória discursiva se constitua enquanto arquivo.



Cristiane Dias
 
Pesquisadora responsável pelo CEDU

Bibliografia:

GUATTARI, F. 1986. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes.
ORLANDI, E. 2001. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes.
___. 2003. Para uma enciclopédia da cidade. Campinas, SP: Pontes, Labeurb/Unicamp. 
PECHEUX, M. 1999. Papel da memóira. In: ACHARD, P. [et. al.] Papel da Memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Ponte. 
PECHEUX, M.; GADET, F.; HAK, T. 1990. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia S. Mariani [et. al.]. Campinas: Ed. da Unicamp.