“Mande uma mensagem quando chegar”: corpos tesos e cariátides nuas na cidade


resumo resumo

Josianne Francia Cerasoli



E três palavras são muito importantes para mim: inspiração, criação, partilha.

Agnès Varda, 2018.

 

Nua em pedra entalhada

O som do piano e o movimento da câmera em close sincronizam os sentidos assim que a narrativa começa. Enquanto a suíte assegura ritmo e harmonia emoldurando a cena, o olhar é levado a percorrer em detalhes, desde o pedestal, uma escultura feminina que sustenta acima da cabeça uma luminária. As nuances sonoras e a silhueta da peça instalada diante de um sóbrio edifício não deixam dúvidas sobre as alusões na cena: todos os sinais se harmonizam à linguagem clássica. A música cessa. Nua, instalada no espaço público, a escultura parece indiferente ao entorno urbano. Uma indiferença recíproca. Corta. Também nua no espaço público está outra escultura feminina, sustentando sem esforço uma luminária acesa que deixa reluzentes seus drapeados dourados ao mesmo tempo que revela outro corpo. Abre-se suavemente o plano e ali está um homem jovem com o dorso nu. Ele consulta o relógio, único traje que porta, e se coloca em movimento, acompanhado pela câmera. É o primeiro corpo que se move no filme. Segue para o meio da rua, caminhando com naturalidade entre pessoas e veículos. Tudo isso em menos de um minuto, até que uma narração enuncie o tema. Sugere certo incômodo, entre corpos, pedras, ruas e edifícios: “o nu, na rua, é mais frequentemente visto em bronze do que em vida, é mais comum em pedra do que em carne. É mais comum em pedra do que em carne e osso” (LES DITES, 1984).

A voz feminina intercala e aproxima indagações a imagens de edifícios e espaços da cidade, a trechos de poemas de Charles Baudelaire (1821-1867), a composições de Jean-Jacques Rameau (1683-1764) e de Jacques Offenbach (1819-1880), a questões sobre peculiaridades arquitetônicas. Não há elemento furtivo entre as peças da narração, inclusive a visual. Cada detalhe desta espécie de colagem está articuladamente cadenciado no curta-documentário de Varda Les Dites Cariatides (1984). Agnès Varda (1928-2019), fotógrafa, diretora, roteirista e artista francesa nascida na Bélgica, cumpre o roteiro em breves 12 minutos. Cuidado em cada minúcia, o documentário deixa um lastro de impressões que mesclam sensações, reflexões, relatos, sentimentos incômodos até, como se explorassem uma escavação arqueológica em território ainda pulsante, em carne viva.

 

 

Não nos surpreendemos ao ver senhoras despidas iluminando as calçadas ou decorando os edifícios ou decorando prédios de maneira graciosa e lasciva. Mais do que as atrevidas mulheres de vaso, ou as sereias pálidas ou bronzeadas. (LES DITES, 1984)

 

Varda ilumina em detalhes a sensualidade paradoxalmente atribuída a cada coluna, em forma humana, que sustenta entablamentos, a cada ornamento fixado em pedra em fachadas das edificações de inspiração clássica e neoclássica. Ora explora o movimento vertical da câmera, observando dos pés à face essas esculturas femininas, ora a conduz lentamente entre pormenores desses corpos representados em material inerte, como que os retirando da paisagem para inseri-los entre passantes urbanos e entre pensamentos de quem a acompanha. Também busca fixar ângulos que seriam impossíveis para olhares que simplesmente passam pela rua, como observa Isabelle McNeill (2016, p. 112), em uma interessante análise do documentário. Mais que surpreender ou oferecer imagens únicas das cariátides, o curta-documentário provoca de várias formas um deslocamento do olhar, desnaturalizando a paisagem urbana. A narrativa a um só tempo informa e incita a pensar sobre esse peculiar elemento arquitetônico.

Uma cariátide, definem os dicionários de língua portuguesa, é um “suporte arquitetônico, originário da Grécia antiga, que se apresentava quase sempre com a forma de uma estátua feminina e cuja função era sustentar um entablamento” (Houaiss, 2004). Em seu Dicionário de Estilos Arquitetônicos, Wilfrid Koch (1998) especifica: “escultura no interior ou no exterior de um edifício, em estreita conexão com sua estrutura arquitetônica.” Para ele, são elementos estruturais plásticos que pertencem ao ornato, mas não devem ser confundidos com mera representação figurativa. Trata-se de um elemento construtivo que embaralha aspectos estruturais e decorativos, função e forma, conformidade a fins racionais e arquitetura simbólica, presente e passado, presenças femininas ostensivamente indiretas em um espaço desenhado por homens.

É a partir desse emaranhado de sentidos que este ensaio toma a (in)visibilidade das cariátides na cidade contemporânea como alegoria para repensar o lugar do feminino no mundo urbano, provocado pela cine-escrita de Varda, alimentado pela errância literária de Lauren Elkin (2022), pela geografia feminista de Leslie Kern (2021) e, sobretudo pela vivência no espaço, como citadina e como pesquisadora do urbano. Não se reivindica algum valor de novidade ou originalidade ao tratar o tema das relações entre gênero e cidade.1 O que se busca é atentar para certas relações e fraturas, certos relevos e entalhes, aproximando alguns elementos, ao modo de uma montagem, para desembaraçar paradigmas que ao mesmo tempo constroem nossas cidades e alimentam sexismos, racismos, preconceitos, desrespeitos, intolerâncias e violências naturalizadas na experiência urbana. O objetivo inconfesso talvez escape ao perfil acadêmico dos estudos urbanos em perspectiva histórica: está na possibilidade de imaginar e abrir espaços para outros futuros urbanos.

 

De cariátides a flâneuses

O título mais apropriado para o roteiro imaginado aqui poderia ser outro: da (i)mobilidade à (in)visibilidade feminina. Ele permitiria acrescentar ao menos quatro camadas simultâneas, dialeticamente operantes, ao enquadramento sugerido em relação a gênero e espaço: mobilidade, imobilidade (ou impassibilidade), visibilidade e invisibilidade (ou o que não se deixa conhecer). Seriam distintas combinações de questões apresentadas à presença feminina na cidade, perpassadas pela dimensão temporal. Isso porque nem as cariátides, nem as mulheres sempre estiveram onde estão ou foram vistas – se mostram – como o são hoje. Há muita mobilidade nessa visibilidade, muita imobilidade nessa invisibilidade, ambas tensionadas por mudanças e nuances. O caso das cariátides é especialmente interessante para buscar acompanhar essas camadas simultâneas. Remetem à antiguidade clássica, a um uso específico dessa estrutura plástica em certos templos, mas são apropriadas e têm suas dimensões simbólicas reinventadas por artistas do chamado renascimento artístico europeu e, outra vez, pelo neoclassicismo e pelos historicismos no século XIX. É quando são levadas solenemente à exibição pública em pedra nas fachadas de edificações, ao mesmo tempo em que a mulher, de carne e osso, passa disputar paulatinamente mais espaços na vida urbana.

As décadas de 1860 e 1870 em várias cidades europeias, como, por exemplo, Paris narrada por Varda, conheceram ao mesmo tempo a proliferação das cariátides, da flânerie e das multidões, também formadas por trabalhadoras e trabalhadores urbanas.2 Depois da leitura da cine-escrita sobre as cariátides – sensível, aguda e precisa – do curta-documentário, a (i)mobilidade e a (in)visibilidade feminina na cidade saltam mais uma vez aos olhos e não cessam de incomodar, de incitar ao movimento. A partir dessa inspiração e desse chamado, examina-se aqui as cariátides, a flânerie e os corpos na cidade.

As incursões urbanas do olhar de Varda vão bem além de Les dites cariatides (1984). Na verdade, a cidade é presença fiel em sua longa cine-escritura, nem sempre tão diretamente, como nesse curta de 1984 e em Visages, Villages, de 2017, por exemplo. Mas não seria impróprio destacar uma sequência de documentários na qual se tensiona o espaço público de modo especial, com uma declinação de gênero ou com um fundo político até. É onde estariam os 12 minutos dedicados às cariátides, transbordando desde Black Panthers (1968), Daguerréotypes (1975), Mur, Murs (1981), o primeiro e o último composto a partir de observações em Los Angeles, o segundo a partir de um recorte da vida na rua Daguerre, 14eme Arrondissement de Paris.3 Seria estratégia narrativa tortuosa demais seguir com a diretora por todas as pistas de temas urbanos que registrou em tela, mas é incontornável considerar que as cariátides não caminham sozinhas. Enunciam mais rastros, alimentam outras reflexões. E retornam duas décadas depois em Les dites cariatides bis (2005), com mais dois minutos de cenas deixadas para trás na versão original. Só isso já sinaliza a impossibilidade de isolar Les dites cariatides (1984) do imaginar-criar-partilhar de Varda. Mas se assume o risco desse enquadramento restrito aqui para abrir espaço ao que pode ser re-imaginado além.

Tomado como produto em si, é curioso o percurso de composição do curta. A própria diretora diz tratar-se de uma encomenda para um programa do canal de televisão TF1, então uma emissora pública e líder em audiência.4 A encomenda era para um documentário sobre as cariátides, estátuas de mulheres, colunas humanas, que, nuas ou seminuas, carregam varandas, batentes, sacadas e toda a sorte de pesados elementos arquitetônicos. Varda conta ter imaginado filmar no Parthenon, abrigo das cariátides gregas originais, do Templo de Erecteion.5 “Mas o programa tinha pouco dinheiro, tive que ficar com as cariátides dos edifícios de Paris. Andei por aí, descobri algumas, filmei-as e me apercebi de que a maioria data da década de 1860”, conta a diretora.6 E sua flânerie pela capital francesa foi decisiva. Embora muitos enquadramentos no documentário sejam impossíveis ao olhar de caminhantes, é marcante nele o papel do olhar-exploratório, da observação-inquiridora. Quem já se percebeu na cidade encarando uma cariátide ou um atlante, sua versão masculina, dificilmente deixou de se identificar com algo na narrativa do curta.

Embora se volte especificamente para as centenas de cariátides que vigiam, imóveis, as ruas na capital francesa, não se trata de um elemento arquitetônico singular ou único. Ao contrário, como professa a razão clássica e neoclássica, suas formas e modelos se nutrem da ideia de universalidade, pouco afeita a diversidades. É possível flagrar essas estruturas plásticas, indiferentes ao entorno, em muitas cidades nas mais diferentes partes, desde que tenham tido contato com o projeto universalista da modernidade. No Brasil, por exemplo, estão debaixo dos entablamentos do Theatro Municipal, no Rio de Janeiro e em São Paulo, do Museu Nacional de Belas Artes, marcando uma diretriz estética da antiga Escola de Belas Artes, e multiplicadas entre fachadas, sempre demarcando certa reverência e uma indisfarçável intenção de distinção. Possivelmente seria muito significativo o que sinalizaria um inventário detalhado de cariátides e atlantes em nossas cidades. Diria talvez algo incômodo sobre os modos como se constrói e se confere valor distinto, desigual, aos espaços urbanos também aqui. E este incômodo não se restringe ao passado.

É interessante notar, nesse sentido, como Varda enfatiza a multidimensionalidade do espaço urbano na narrativa sobre as cariátides parisienses, alternando o movimento cotidiano da cidade e seus habitantes ao testemunho discreto e quase onipresente das esculturas e fachadas. Por vezes, demora-se no detalhe dos corpos de pedra, deixando somente o piano de Rameau ou a ária de Offenbach ao fundo, como se buscasse transportar os sentidos todos para 1860. Mas por vezes um brevíssimo momento, como se fosse um lapso da câmera, deixa um elemento contemporâneo atravessar a tela, como quando focaliza esculturas da fachada da Opera Garnier e deixa a lente capturar um ônibus que atravessa o enquadramento, destacando ao passar a placa com a inscrição “Opera”. Não é gratuito ou desinteressado. Há uma intrincada combinação entre situações históricas, uma visão pessoal e dimensões coletivas envolvendo as cariátides, e a diretora não nos poupa disso no percurso.

Pode-se acompanhar, entre os elementos dessa narrativa multidirecional, ao menos três movimentos cujo enlace permite construir um entendimento, ou melhor, uma aproximação tateante, cautelosa em relação ao tema. Mesmo quando a voz que narra oferece dados, fatos e informações mais ou menos precisas sobre as cariátides, é a partir de um olhar inquiridor ou até reticente, como se convidasse a concatenar junto, a partilhar uma sensibilidade em construção. Isso se dá nos três movimentos da narrativa: aquele decorrente dos efeitos das imagens propriamente ditas, controladas pela própria câmera que alterna close-ups e deslizamentos horizontais e verticais, a maior parte das vezes muito próximas às “personagens” – como se as cariátides fossem inquiridas e, ao mesmo tempo, indagassem. Outro movimento se relaciona à ambiência das cenas, quando a trilha sonora e os poemas recitados invariavelmente tomam a narrativa pela mão – nesse caso, isso é tão contundente que será preciso um aparte. O terceiro movimento seria reservado às informações, mas também essas não deixam de resvalar da cautela, com associações nem sempre diretas ou com dados até certo ponto vacilantes. Os três movimentos fazem a narrativa deslizar entre perguntas mais ou menos óbvias, embora não usuais, e respostas nunca taxativas, reiterando constantemente quão desejável é desnaturalizar a presença dessas figuras femininas sobriamente mudas em paisagens urbanas cotidianas.

Nesse terceiro movimento, há ao menos uma passagem muito expressiva. Ainda no primeiro quarto do documentário, como que aceitando os protocolos desse gênero de filme, a voz que narra assume para si mesma a autoridade de uma tratadística clássica:

Vitruvius, o arquiteto romano, conta as origens. As cariátides, habitantes de uma cidade no Peloponeso chamada Karyai, ajudaram os persas que estavam em guerra com outros gregos. Os gregos derrotaram os persas e se vingaram das cariátides colaboracionistas, destruindo a cidade, esfaqueando os homens e levando as mulheres como escravas. (LES DITES, 1984)

 

O primeiro tratado ocidental conhecido de arquitetura, uma autoridade aparentemente inconteste, De Architectura, é atribuída ao arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio, e teria sido composto no século I a.C. em dez volumes. Assim como as cariátides, redescobertas ou reinventadas no renascimento, também o tratado foi redescoberto no século XV, sendo a partir de então reeditado e reinterpretado por diversos outros tratadistas. Há muita controvérsia sobre a autoria, a composição, as interpretações, as adições feitas ao longo do tempo e, como demonstra Choay (1980), sobre a autoridade reconhecida e atribuída à tratadística. Ao comparar os tratados sobre edificação àquele que considera de fato o criador do campo teórico e prático, De re aedificatoria, ou Da Edificação, de Jean Baptista Alberti, elaborado no século XV, a autora distingue sistematicamente uma série de características que relativizariam a autoridade atribuída a Vitruvius, questionando tratar-se da matriz referencial do campo. Não caberia retomar aqui este debate, mas é importante reportar a ele para situar a confiabilidade que Varda parece buscar. Independente das controvérsias, trata-se de autoridade reconhecida no meio, além de ser autor de uma das poucas hipóteses conhecidas sobre a origem e a função das cariátides. Depois de serem levadas como escravas, as mulheres de Karyai teriam sido exibidas em cortejo como despojos de guerra, triunfalmente, em suas vestes nobres de mulheres casadas. E “para comemorar essa punição às mulheres, os arquitetos da época, em vez de colunas colocaram as esculturas dessas mulheres nos edifícios públicos” (LES DITES, 1984), narra Varda a partir de Vitruvius. No tratado original, ele teria acrescentado que a forma como foram compostas as colunas, carregando uma carga, seria para que o pecado e o castigo do povo de Karyai fossem conhecidos e transmitidos até à posteridade. Um castigo, portanto.

Analisando detidamente essa mesma passagem de Vitruvius, Elena Merino Gómez e Juan A. Rodríguez Fernández (2015) encontram ainda uma deliberada manipulação desse trecho do tratado, aparentemente atualizando referenciais a cada edição, buscando conferir aos poucos verossimilhança à versão narrada. Apesar de não existir na versão original menção a qualquer ilustração reunida pelo arquiteto, as sucessivas publicações da obra acrescentaram retiradas de obras do renascimento italiano e de tratados e manuais franceses, acolhendo diferentes propósitos. O trecho de Vitruvius, porém, permaneceu sem atenção devido a seu contexto. Conservou a leitura descontextualizada e foi repetido inclusive em seu teor moralizante, e em certa medida humilhante para as mulheres – escravizadas, castigadas exemplarmente.7 O trecho vitruviano, retirado do contexto para referenciar essa curiosa estrutura plástica da cariátide, é exposto no tratado como um mero exemplo da necessidade de certos referenciais culturais para o arquiteto. Está no trecho da obra que trata da formação do profissional, para demonstrar o argumento a favor da necessidade de um vasto conhecimento da história ao arquiteto, para ser capaz de justificar aos “inquiridores gregos” as partes ornamentais do projeto. O exemplo, sem ilustrações ou referências, aparece exatamente nesses termos no Capítulo 1, livro 1: “A educação do arquiteto”. Varda não entra no debate. Mas em duas frases elípticas, sugere que não o ignora. “A anedota foi esquecida, as cariátides nasceram” (LES DITES, 1984), resume. E segue a partilha de uma sensibilidade, tateando com quem acompanha a narrativa, sem sentenciar uma definição a não ser este tangenciar impreciso, que mais uma vez provoca a compreensão, a partir do enlace dos três movimentos: “Cariátide é uma ideia.” Assume-se, pois, sua dimensão ideológica, política, ficcional.

 

A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. [...] Os enunciados dos políticos e dos literários fazem efeito no real. Definem modelos de palavra e de ação, mas também regimes de intensidade sensível. (RANCIÈRE, 2009, p. 59)

 

Pode-se dizer, acompanhando Rancière nas aproximações entre estética e política, que as narrativas em torno das estruturas arquitetônicas aproximam trajetórias entre o visível, o dizível, os modos de ser, os modos de fazer, os modos de dizer, atingindo percepções e capacidades dos corpos. Mas a que ideias se associa a cariátide, afinal? A cine-escritora não toma partido, explicitamente, em relação à tratadística. Mas não deixa de se valer de uma interpretação para anotar pistas importantes aos contemporâneos sobre certo comprometimento moral envolvendo a história – ou a anedota – sobre essas esculturas. Seria razoável supor que a audiência do documentário associaria a adjetivação “cariátides colaboracionistas” ao imediato julgamento público e aos castigos imediatamente impostos às francesas acusadas de colaborar em alguma medida com ações da ocupação nazista da França durante a Segunda Guerra. Castigo justo? É uma sentença moral que não se nomeia, nem para a anedota, nem para a traição flagrante. Essa associação entre o castigo das cariátides e das collabo também é destacada por McNeill (2016), que sugere que a punição pública desses corpos teria oferecido certo orgulho às custas das mulheres que não entenderam que, decisivamente, seus corpos não lhes pertencem. É como se os enunciados se apropriassem dos corpos, desenhando comunidades de significado aleatórias, reconfigurando o sensível comum.

 

Enunciados, corpos, interditos

Entre os três movimentos cujo enlace permite construir um entendimento seguindo a narrativa multidirecional em Les dites cariatides (1984), o segundo, relacionado à ambiência das cenas, parece tocar especialmente nessa reconfiguração do sensível comum. Isso se dá especialmente quando a trilha sonora e os poemas recitados são mobilizados ligeiramente deslocado do contexto, e sugerem outros enunciados. Logo no início, ainda antes de adentrar a educação estética vitruviana, enquanto a câmera ainda apresenta o tema e acompanha de perto os corpos sinuosos, sensualizados das cariátides nas fachadas – “simétricas, mas nunca idênticas”, informa-se em voz e imagem – surge a ária “Dis-moi, Vénus”, da opereta La belle Hélène, de Offenbach. Não na voz de uma cantora lírica, como os ouvidos da época estariam habituados, e os nossos esperariam ouvir. Mas numa voz masculina que quase sussurra um excerto, de modo lânguido, frouxo, na interpretação lasciva do ator e cantor François Wertheimer. A ária bem conhecida da opereta expõe uma dimensão moral e paradoxal da mulher, especificamente da esposa, numa tensão entre a ânsia de “defender a honra de nossos maridos” e as “infelizes circunstâncias que nos fazem contrariar nossa vontade”. Quase que lamenta a beleza, como dom fatal dos céus: é preciso lutar contra os homens, contra os deuses... Canta Wertheimer: “Diga-me, Vênus, que prazer você encontra / De fazer a virtude desabar dessa maneira?”8 São enunciados que interrogam a um só tempo os corpos em pedra e bronze e os nossos, com seu ligeiro movimento de desvio.

 

 

 

Figura 1 e 2: Frame de Les dites cariatides (1984), min. 2:24 e 2:40.

 

Só mais adiante a voz que narra oferece, entre outras informações contextuais sobre o período do auge das cariátides em Paris, a referência à opereta, compondo entre vários elementos um certo modo de colagem que (re)configura o sensível comum. Em uma sequência intercalada por imagens de fachadas povoadas de cariátides, faz menção rápida à aparição de algumas obras, lembradas apenas pelo título e pelo autor, mas ordenadas cuidadosamente em uma sequência cronológica. Fala da poesia de Leconte de Lisle, Poèmes antiques, de 1852, e de Théodore de Banville, Cariátides, de 1842; do impactante Les Misérables, de Victor Hugo, de 1862; da estreia da opereta La Belle Hélène, de Offenbach, em 1864, no Théatre des Varietés; da publicação do primeiro tomo de Das Kapital, de Marx, de 1867, e do desconcertante Flaubert, em Éducation Sentimentale, de 1869. Menciona ainda o último Delacroix, provavelmente um dos desenhos de 1863 ou as publicações sobre estética; e o primeiro quadro de Manet, Le Bain ou Le Déjeneur sur l’herbe, exposto no Salon des Refusés de 1863, “que escandalizou tanto quanto o de Baudelaire” – afirma.

Não parece despretensioso ser a obra de Manet a única a merecer um comentário. Afinal, quase todas elas estão situadas no período do Segundo Império na França (1842-1870), marcado por efervescências culturais, sociais e urbanas, entre as quais também figura essa revolução, em diversos sentidos, expressa na seleção de obras mencionada. É exatamente quando as fachadas na cidade reformada de Paris ganham a face em certo sentido enobrecida que permanece vigente. É também o período de profusão das cariátides. A menção ao escândalo gerado pelo quadro de Manet, no qual mulheres nuas e seminuas compartilham um lanche sob a relva entre homens elegantemente vestidos, poderia sugerir reação similar diante das sensuais cariátides nuas. Mas isso não se dá desse modo. Aos corpos masculinos, a camaradagem; aos femininos, a desconfiança. “Diga-me, Vênus, que prazer você encontra...”

A esta altura, caberia inquirir sobre a visibilidade dos corpos femininos na cidade. Caberia indagar às cariátides como se viam nos corpos vestidos das transeuntes, e às passantes, como sentem a presença desses corpos despidos em permanente campana. A escritora Lauren Elkin, em Flâneuse (2022), percorre questões similares a partir da literatura e da experiência urbana, incomodada com a ostensiva presença masculina nas ruas, largamente testemunhada pela flânerie nas grandes cidades do século XIX, que prolifera junto com as cariátides, mas não é acompanhada de uma literatura sob voz e pele femininas. Ela admite, de início, a vigência de restrições e costumes sociais, mas insiste na questão: “não há como negar que as mulheres estavam lá; precisamos tentar entender o que as caminhadas pela cidade significavam para elas” (ELKIN, 2022, p. 18). Por certo, circular a sós no espaço público, sobretudo para camadas sociais mais abastadas, poderia reunir os mais variados riscos à sua virtude e reputação. O que se diria, então, das deambulações urbanas, tão enaltecidas pelos poemas de Baudelaire?

É interessante que “o poeta dos poetas”, um “lírico no auge do capitalismo”, seja evocado neste ponto a partir de distintas vozes. Afinal, a grande cidade é seu cenário, as mulheres frequentaram sua poesia como nenhuma outra, as musas dançam com a vertigem da modernidade com rara desenvoltura a partir de Baudelaire. A narrativa de Varda toma seus poemas quase como compartes de roteiro. Elkin (2022) o aborda como contraponto constante para inquerir sobre o lugar do feminino – ou melhor, de sua (in)visibilidade – no espaço público da cidade. E mesmo Marx, nos mapeamentos estratégicos de ações possíveis e desejáveis para a transformação da sociedade, o compara à figura do “conspirador profissional”, como detalham os instigantes estudos de Walter Benjamin sobre o poeta na modernidade.9 Baudelaire, enuncia Varda (LES DITES, 1984), “o poeta dos poetas que cantou as mulheres e a dor como ninguém.”

 

Sou bela, oh mortais! como um sonho de pedra, / e meu peito, no qual cada um de vocês / foi machucado por sua vez, / ele foi feito para inspirar ao poeta um amor eterno e mudo como a matéria. 10

 

O ritmo do enlace entre as imagens-vídeo e das imagens-poema se intensifica na segunda metade da narrativa de Varda, e chega a deixar a impressão de que é Baudelaire quem o assume. São recortes vários dos poemas de Fleurs du mal, ao lado de algumas cartas do poeta que, sobrepostos às cariátides, parecem dialogar com ele. “Eu sou bela e ordeno que por amor a mim não ame mais do que o Belo; eu sou o Anjo da Guarda, a Musa e a Madona.”11 O documentário assume – e este ensaio o acompanha nesse movimento – que diferentes representações da cidade podem corresponder a distintas elaborações, diferentes afetações experimentadas em seu cotidiano. Robert Pechman, historiador também sensível aos entrelaçamentos entre experiências na urbe e expressões artísticas, leva adiante aquilo que Benjamin chamou de porosidade da cidade, na qual nos deixamos afetar pela urbe, e toma a cidade não no plano das relações de produção, mas no da produção de relações. “Nossa sintonia com o ambiente é maior do que a gente imagina”, diria Lauren (2022, p. 26).

 

Todos os afetos estão na cidade. Ódios, paixões, vergonhas, compaixões, ressentimentos, desejos. Quanto mais a cidade puder absorver esses afetos, mais densamente humana ela vai se tornando. E quanto mais complexos forem esses afetos e mais variada a rede de relações humanas e sociais, tanta maior elaboração será necessária à decodificação de seu sistema de valores e à sua representação. (PECHMAN, 2009, p. 352)

 

A sondagem narrativa tateante de Varda, sobre afetos e afetações na cidade, não poderia terminar sem algo de mistério. A cidade não se revela. É preciso mapeá-la com os pés, como sugere Elkin (2022), mas mobilizando todos os sentidos possíveis na captura. Enquanto vemos na tela um anjo esculpido em matéria bruta, imenso, cobrindo três pavimentos de um edifício no 3eme Arrondissement, Varda se antecipa à nossa pergunta, direta: “Ninguém sabe quem fez essa cariátide ou o que ela representa” (LES DITES, 1984). Enquanto oferece vários ângulos da escultura arquitetônica, capturando-a em um plano aberto, localizando a obra, ou tomando-a através da porta de vidro de um comércio do outro lado da rua, oferecendo uma perspectiva do passante no cotidiano – e assim deixando claro o quão difícil é acreditar no que ouvimos: que tamanha presença pudesse passar despercebida –, é mais uma vez com Baudelaire que a narrativa busca preencher os sentidos.

Anjo cheio de alegria, você conhece a angústia,

A vergonha, o remorso, os soluços, os desconfortos,

E os vagos terrores daquelas noites terríveis

Que apertam o coração como papel amassado?

Anjo cheio de alegria, você conhece a angústia?

Anjo cheio de bondade, você conhece o ódio?12

O foco da câmera se volta aos ramos sustentados por uma das mãos do anjo. O piano atualiza outra composição de Rameau – lembraria, alguém, que o destacado compositor do barroco francês é também autor de um tratado sobre harmonia? – e Agnés Varda finaliza as indagações sobre as cariátides deixando a câmera seguir, vagarosamente, dos pés à cabeça, como no início, mas agora para mostrar a maior escultura entre as fachadas de Paris, o enigmático Anjo da rua Turbigo, 57. Uma tomada lateral do perfil da enorme presença – “Máscara ou ornamento, eu a saúdo. Eu adoro sua beleza”13 – e em seguida a câmera é elevada sobre os telhados e rufos da cidade, mirando o horizonte sob o contorno sonoro das notas clássicas de Rameau. Fim do filme. Mas não das indagações. O olhar curioso explora as tecnologias que permitem hoje “passear” virtualmente pelo entorno daquela rua, Turbigo esquina com Réaumur, bem ao lado do metrô Arts et Métiers. De fato, parece tão imenso quanto imperceptível, inserido na paisagem, o anjo-cariátide, presença ostensiva e muda. Mas uma surpresa como que reabre o diálogo, e envia uma mensagem de chegada: bem ali, um enorme volume escultural repousa indiferente a quem passa, relaxadamente instalada. Uma escultura monumental em bronze, com mais de dois metros de diâmetro, obra do escultor francês nascido na Itália, Antoniucci Volti (1915-1989). A escultura Harmonie representa uma enorme figura feminina, nua, deitada, formas exageradamente arredondadas, bronze polido, pernas e braços entrelaçados, como que se dobrando sobre si mesma. Bem ali no chão do pequeno largo, provocando o desvio de quem passa, ao alcance da mão, a representação de mulher parece optar por não ver o que todos podem ver e, de costas para o anjo, dorme relaxada. Se a cariátide é uma ideia e aponta para certo ideal de mulher na arquitetura, o que seria esse retumbante sono em meio à urbe? Escolhas.

 

“Os ambientes nos habitam”: visível, pensável, possível

Foi a partir de Lauren Elkin que este ensaio alcançou Agnès Varda, apesar das escolhas feitas na composição da escrita sugerirem o contrário. Elkin (2022) destacou em suas deambulações urbano-literárias uma dimensão interessante do cine-escritura, que me levou imediatamente às tais cariátides. Segundo ela, para Varda o primeiro ato feminista é olhar, ou seja, é dizer: “Sou vista, mas também posso olhar” (ELKIN, 2022, p. 282). Ao olhar de ambas acrescentaria o olhar que se busca refletir neste escrito, entendendo ser a cidade uma constante provocação e por isso mesmo uma possibilidade, uma potência. Um horizonte sempre pode ser vislumbrado acima dos rufos ou debaixo dos pés. A cidade estimula, faz andar, provoca o pensar, instiga o querer, desloca conveniência. Desassossega. “A cidade é a própria vida”, extrapola Elkin (2022, p. 49). Nos percursos que a autora faz pela literatura em busca de vestígios sobre como as mulheres se viram nesse espaço, demora-se em Virgínia Woolf – e na Londres de Woolf –, que refletiu profundamente sobre a relação entre as mulheres e a cidade. Em 1927, escreveu seu grande ensaio sobre o flâneuse-ar, com o sugestivo título de “Batendo pernas nas ruas”. Nele imagina uma liberdade de ir e vir para as mulheres nas ruas da cidade, conforme queiram, a pé. Não passa despercebido para a autora como a experiência feminina da cidade era diferente da masculina, e mesmo quando aposta na possibilidade do anonimato durante uma perambulação por Londres, registra com alguma ambiguidade as impressões de certa liberdade a partir dessa experiência. Afinal, na rua não somos mais “totalmente nós”, e nos tornamos “funções da paisagem urbana”.

Se “os ambientes nos habitam” (LES DITES, 1984), como enuncia Varda, não há dúvidas de que é preciso evitar a todo custo participar de modo desinformado e ingênuo da paisagem urbana. Será sempre preciso conhecer o ambiente, seus sentidos comuns, suas justificativas, seus simulacros, seus subterfúgios e suas vigílias para caminhar nele de modo propositivo. É preciso entender as reações que nossos corpos provocam – afinal, a liberdade cada vez mais expansiva das mulheres foi recebida com pânico moral em relação a todas as coisas, como lembra a geógrafa feminista Leslie Kern (2021, p. 13). Aprender a ver como a cidade é configurada para sustentar uma forma específica de organizar a sociedade – por gênero, raça, sexualidade e muito mais – é entendido por ela como ponto de partida para inventar novas possibilidades. É nesse sentido que se reivindica a possibilidade de uma cidade feminista como uma experiência contínua de viver de maneira diferente, viver melhor e com mais justiça em um mundo urbano, segundo Kern (2021, p. 114). “Não sei se esse plano algum dia irá se concretizar, mas há algo de mundial em imaginar um futuro centrado na amizade feminina”, afirma (KERN, 2021, p. 58).

“Mande uma mensagem quando chegar”, algo que pode soar tão trivial, participa de toda essa trama dos ambientes que nos habitam e que nos indagam à vigilância constante, inclusive quanto a nossas expectativas. O gesto simples e rotineiro entre as mulheres, desde a adolescência, quando se começa a ter maior liberdade para perambular pela cidade, não é outra coisa senão o exercício simultâneo da solidariedade, ou da amizade feminina, de que fala Kern (2021), e da tomada de consciência das fronteiras invisíveis e dos interditos da cidade, para desafiá-los, como propõe Elkin.

 

Somente tomando consciência das fronteiras invisíveis da cidade é que podemos desafiá-las. Uma flânerie feminina — uma flâneuserie — não se limita a mudar o modo de nos mover no espaço, mas intervém na organização do próprio espaço. Reivindicamos nosso direito de perturbar a paz, de observar (ou não observar), de ocupar (ou não ocupar) e de organizar (ou desorganizar) o espaço conforme nossos termos. (ELKIN, 2022, p. 335).

 

Com essa perspectiva, imaginando ao mesmo tempo a possibilidade de refazer o espaço – não propriamente sua forma, mas as relações com ele, a produção de relações que nele se dá – e ciente da impossibilidade de vigência de um espaço neutro, retoma-se sob outro ângulo o olhar das cariátides. A indagação que persiste diz respeito aos universais a que sempre remetem os valores apoiados no classicismo, incontornavelmente excludentes e por vezes fontes de intolerâncias e incompreensões. Analisando o retorno a certos classicismos, Alan Colquhoun (2004) se pergunta sobre a tradição clássica: haveria nela um valor estético a-histórico ou estaria circunscrita a contextos e, sendo assim, remeteria sempre a conotações políticas específicas? Acompanha projetos formalistas e estruturalistas em suas reflexões sobre a arquitetura, para em seguida concluir no texto “Classicismo e ideologia”:

 

Todos os retornos ao classicismo indubitavelmente possuem uma noção em comum: a ideia de que é impossível criar uma linguagem arquitetônica ex nihilo. Porém, há outra ideia que todo momento de neoclassicismo compartilha, que é a da existência de uma única tradição normativa na arquitetura europeia. Quaisquer que sejam as táticas imediatas de sua motivação, o neoclassicismo sempre foi um retorno a essa tradição normativa – uma tradição que de uma vez por todas estabeleceu os limites da arquitetura como uma arte. (COLQUHOUN, 2004, p. 195)

 

À luz dessa dimensão normativa, como seria possível reconsiderar ou ressignificar traços, gostos e valores do passado, que permanecem vigentes, entrecruzados a atitudes e mudanças na cidade contemporânea? Certas ideias sobre gênero, feminilidade, corpos e edificações na cidade podem estar encarnadas, conservando traços de gostos do passado e atitudes em meio a mudanças na cidade contemporânea, talvez de modo insuspeito e aparentemente neutro. É preciso conhecê-las, desvendar suas permanências, interromper suas interferências passivas. “Uma cidade é uma tentativa de certa espécie de imortalidade coletiva”, escreveu Marshall Berman num ensaio sobre a ruína urbana: “morremos, mas esperamos que as formas e estruturas de nossa cidade continuem a viver” (ELKIN, 2022, p. 43). Essa suposta perenidade, porém, não deveria manter-se sem escolhas, como se fossem naturais, inconscientes, indomáveis, neutras. A escolha, o desígnio, o desejo precisam encontrar lugar nessas pautas que abrem a cidade para futuros imagináveis.

Talvez permaneçam pertinentes os apontamentos de Jacques Derrida (2006) em entrevista a Eva Meyer em 1986. Ele se indaga sobre o potencial de uma arquitetura onde o desejo possa morar, e se pergunta sobre as relações entre arquitetura e formas do pensamento. Poderia ser a arquitetura outra coisa que não uma representação do pensamento? A entrevista não aponta claros caminhos, mas esboça uma direção que avalia como promissora: “O que está surgindo pode ser compreendido como a abertura da arquitetura, como o início de uma arquitetura não representativa” (DERRIDA, 2006, p.169). Ou seja, haveria abertura para uma relação nova entre superfície, desenho, espaço e arquitetura. Entender esses caminhos, reavaliar essas possibilidades e nunca deixar de apreender, reavaliar e reconquistar o espaço capaz de produzir relações renovadas, que acolham o diverso, que evitem uma única tradição normativa que parece soar como compulsória. É a partir dessa consideração que se propõe algumas direções para desembaraçar paradigmas que, ao mesmo tempo, constroem nossas cidades e alimentam sexismos, racismos, preconceitos, desrespeitos e violências naturalizados na experiência urbana para podermos imaginar e abrir espaços para outros futuros urbanos.

 

Referências

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Filmografia

LES DITES Cariatides. Agnès Varda (dir.). França: Janus Film, 16mm, 12min., 1984.

LES DITES Cariatides bis. Agnès Varda (dir.). França: Janus Film, 16mm, 2min., 2005.

VARDA par Agnès. Agnès Varda (dir.). 120min., França, 2018.


1  O tema das relações entre espaços construídos e gênero vem sendo explorado por muitas abordagens diferentes e importantes, e de diferentes modos este ensaio dialoga com elas. Por exemplo, a perspectiva histórica, como nas histórias das mulheres (PERROT, 1992, 2005), ou abordagens culturais e/ou políticas, como aquelas discutidas na importante coletânea “Relações de Gênero e Diversidades Culturais nas Américas”, de 1999, ou em discussões sobre a mulher no espaço público, como Stella Bresciani trabalha em “O Anjo da casa”, ou trabalhos que tomam a literatura de autoria feminina ou outras dimensões culturais em contraponto com a cidade, como Susan Squier (1983) aproximando Virginia Woolf e Londres. Considera-se também perspectivas da geografia feminista, como analisam Silva e Ornat (2022), ou ainda pelos provocativos questionamentos do campo da arquitetura, a partir de Agrest originalmente publicado em 1988 e republicado em Nesbitt (2006), ou da tese de livre docência de Silvana Rubino (2017), que alcança também a dimensão da domesticidade. Alterando-se a escala, pode-se mencionar pautas críticas para o urbanismo, como aponta a publicação de Helen Jarvis (2009) sobre cidade e gênero, ou ainda recentes trabalhos coletivos ao mesmo tempo críticos e propositivos a esse respeito, como a coletânea organizada por Carolina Pescatori e Maribel Aliada (2022), ou a reflexão sobre ensino de projeto em arquitetura e urbanismo, “Indisciplina epistemológica”, de Rossana Tavares e Diana Ramos (2021). E, sem dúvida, é importante pontuar o lugar crítico da filosofia desconstrutivista, como a contundente entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer publicada na revista Domus em 1986 e também republicada por Nesbitt (2006).

2  Vale muito acompanhar os trabalhos de Michele Perrot sobre a mulher no espaço público, já citados. E também o seminal Londres e Paris, de Bresciani (1982), para pautar as transformações nas grandes cidades a partir do século XIX, bem como os ensaios sobre urbanidade de Eliana Kuster e Robert Pechman (2014) em O chamado da cidade, especialmente o capítulo “Maldita rua”.

3  Notas biográficas, com identificação de premiações e reconhecimentos bem como uma filmografia quase completa de Varda está disponível em: https://www.cine-tamaris.fr/lunivers-de-cine-tamaris/la-bio-dagnes/. Acesso em: 01 mar. 2023.

4  Primeira emissora de televisão da França, iniciada em 1935 pelo governo francês, a Télévision Française 1 ou TF1 foi privatizada em 1987. Permanece por quase toda sua trajetória líder de audiência na França.

5  Localizado ao lado do Partenon, na Acrópole ateniense, o templo de Erecteion faz alusão em seu nome a um rei mítico ateniense e é consagrado a Atenas e Poseidon. Há uma sala das cariátides, com cinco das seis esculturas em mármore originalmente situadas nas laterais do templo, no Museu da Acrópole, em Atenas (a sexta está desde o século XIX no Museu Britânico). Essas e outras informações estão disponíveis em: https://www.theacropolismuseum.gr/en/erechtheion-karyatid-kore-b. Acesso em: 01 mar. 2023.

6  Disponível em: https://www.cine-tamaris.fr/les-dites-cariatides/. Acesso em: 01 mar. 2023.

7  Nem mesmo a referência à cidade de Karyai pode ser tomada a sério nesse trecho, embora seja repetido sem se atentar à anedota. As Cariátides da mitologia provavelmente remetem aos que cultuam a uma das duas deusas Ártemis nela existentes, a cretense, associada à fertilidade e à ideia de Grande Mãe e cultuada em Cárias, na Arcádia e na Lacônia. (BRANDÃO, 1991)

8  Versos da canção La Belle Hélène, ato II (Invocation à Vénus: Nous naissons toutes soucieuses): Nous naissons toutes soucieuses / De garder l'honneur de l'époux, / Mais des circonstances fâcheuses /Nous font mal tourner malgré nous... / Témoin l'exemple de ma mère ! / Quand elle vit le cygne altier / Qui, chacun le sait, fut mon père, / Pouvait-elle se méfier ? / Dis-moi, Vénus, quel plaisir trouves-tu / A faire ainsi cascader la vertu ? // Ah ! Malheureuses que nous sommes !... / Beauté, fatal présent, des cieux !... / Il faut lutter contre les hommes, / Il faut lutter contre les dieux ![...] (destaques meus, referentes aos versos cantados no documentário).

9  Sobre a imagem do conspirador profissional em Marx, ver no estudo sobre Baudelaire, de Benjamin (1995, p. 13-16).

10  Do original La Beauté: Je suis belle, ô mortels ! comme un rêve de pierre, / Et mon sein, où chacun s’est meurtri tour à tour, / Est fait pour inspirer au poète un amour / Éternel et muet ainsi que la matière. (BAUDELAIRE, 2015, p.32)

11  Do original XLII: Je suis belle, et j’ordonne / Que pour l’amour de moi vous n’aimiez que le Beau ; / Je suis l’Ange gardien, la Muse et la Madone (BAUDELAIRE, 2015, p.65).

12  Do original Réversibilité: Ange plein de gaîté, connaissez-vous l’angoisse, / La honte, les remords, les sanglots, les ennuis / Et les vagues terreurs de ces affreuses nuits / Qui compriment le cœur comme un papier qu’on froisse? Ange plein de gaieté, connaissez-vous l’angoisse? / Ange plein de bonté, connaissez-vous la haine, / Les poings crispés dans l’ombre et les larmes de fiel, / Quand la Vengeance bat son infernal rappel, / Et de nos facultés se fait le capitaine? Ange plein de bonté, connaissez-vous la haine? (BAUDELAIRE, 2015, p.67)

13  Do original L’amour du mensonge: Masque ou décor, salut ! J’adore ta beauté (BAUDELAIRE, 2015, p. 150)