– We call it: “dolce far niente”.
It means “the sweetness of doing nothing”1
1. Exercícios de...
Paisagem, como a tessitura clariceana do dizer sobre o gosto do mundo besseano. Porque, no meu contido horizonte, eles não apenas contemplam um mundo desvelado pelo sensível, mas, sobretudo, experimentam mudar seus corpos de posição. Ver e estar como binóculos. Sim, não vemos as coisas como são (afinal, isso sequer existe), e nem como estão, mas como estamos. E neste texto, estou Clarice Lispector e Manoel de Barros. Eu estou Jean-Marc Besse e Jacques Rancière. Eu estou Andrei Tarkovsky, Cláudio Assis...
2. Paisagem como corpo-poesia
Manoel diz que o olho vê e a imaginação transvê (o mundo). Por uma semana, decidi fotografar meu cotidiano, como exercício de sentir-paisagem. Por uma semana, minha retina continuou a exercer a política visual que me foi biologicamente estabelecida. Porém, foram 168 horas de fotorrecepção ativa. [Eco] Decisão ativa. Sete ciclos circadianos que já não mais pareciam algo resultado somente do trabalho de um fotorreceptor atrofiado. Durante os 10.080 minutos que constituíram esse exercício, foi como se a minha “cápsula pial” (Pia-máter)2 estivesse por recobrir meu corpo inteiro, e não somente a superfície da “glândula pineal”3.
· NOTA MENTAL
Fig. 01 - Os núcleos supraquiasmáticos e a glândula pineal
Fonte: https://thebrain.mcgill.ca/flash/a/a_11/a_11_cr/a_11_cr_hor/a_11_cr_hor.html
Corpo, portanto, como miniatura virada pelo avesso. Pia-máter craniana em pleno funcionamento, para dar conta de um cérebro e uma coluna que decidiram não apenas ver, mas também transver o mundo. Eis um corpo-poesia no seu exercício de sentir-paisagem.
* * *
Veias abertas e uma pele desidratada
Vejo, pois, todas as minhas conexões tornadas possíveis
Estou diante dos meus caminhos neurais
[Eco] Eis um corpo-poesia no seu exercício de sentir-paisagem
E depois?
3. Paisagem como delírio do verbo
Paisagear emoções que nos atravessam
grafadas por um corpo-mapa que se percebe como tal
Escala intensiva
Por isso, bordar é tornar borda
É colocar aqui e além
tudo que é potência de agir
Agir…
no “com”
de cada um de nós
[Eco] Nós…
de afetações que aumentam
nosso horizonte sensível
e tornam nosso desejo…
uma respiração a ser partilhada
em devires infinitos
Combinações e arranjos de desejos
Morar no transbordo das emoções criativas
Eis, a vida me interessa
esteja ela no papel ou na rua
esquina de possíveis
Eu posso…
Eu também…
E eu também…
Nós…
4. Paisagem como deslegenda
Quando as reticências do nosso cotidiano
estiverem presas entre colchetes...
Não, entre […]
E não choveu!
Nem muito e nem pelo contrário…
Pelo menos
estou em casa.
5. Paisagem como escala intensiva
Alguém? Ninguém!
Alguém? Ninguém!
Há alguém? Sem ninguém!
Eco]
Não, ninguém! Alguém?
Horizonte desdobrado.
– Ergue a cabeça!
O que não se vê?
Diferença e repetição.
Dobra, redobra
miniatura retumbante
Escala intensiva de si mesmo
Vê! Vê?
· NOTA MENTAL
A miniatura de mundo me chega por duas memórias. A primeira é passageira. Lembro bem, mas sem saudade. Refiro-me à leitura da poética bachelardiana. É dela, no entanto, que me vem a segunda. Essa, sim, sentida e pretendida: a do último filme do cineasta russo Andrei Tarkovsky, O sacrifício, de 1986.
Fig. 02 – Andrei Tarkovsky dirigindo cena do filme O sacrifício.
Fonte: https://cinemascope.com.br/especiais/o-sacrificio
O cineasta poeta faz dobrar na imagem a poesia do sonho que mistura mundos colocados pelo avesso. De um lado, o outro. Como na cidade em que hoje habitamos. Qual o contexto da sua morada? Com quantas emoções se constrói um cotidiano adoecido? No filme, a guerra. No aqui, a rua que atravessamos todos os dias. E o que resta? Partilha, comunhão e atravessamento.
* * *
6. Paisagem como estatuto do olhar e ser olhado
Do estatuto do olhar e ser olhado
passarinho que escuta a cor da criança peralta
ela rabisca a paisagem altar
e escreve nas entrelinhas do desejo:
– Aurora!
7. Paisagem como chão de palavras caídas
Frente
Verso
Verso?
Manoel fotografou o silêncio
mas o silêncio é privilégio
porque na rua
escutei
não o cantar dos pássaros às 5 da manhã
mas o gorjeio do cantarolar
que fazia eco no fundo de um tambor do lixo
Era uma cantiga para o estômago
Ouvi de intrometido
nem sequer cheguei perto para perguntar que música era aquela
Fui, no entanto, fotografado
no instante mesmo das entrelinhas
da minha indiferença
Da nossa indiferença
E a cada esquina, um corpo feito retalho
numa mistura de cimento, roupa, pele e palavras caídas
Desculpa, Manoel
Não fotografaria tal gesto
porque eu queria mesmo era fotografar o grito
Como não pude
— Silêncio!
8. [Eco] dolce far niente
A primeira vez que ouvi essa expressão foi num post viral de uma rede social conhecida. Tem sido cada vez mais comum encontrar manifestações culturais, artísticas e intelectuais problematizando o nosso modo de vida contemporâneo adoecedor. Desde Hannah Arendt até os mais recentes trabalhos de Byul-Chul Han, “a doçura de não fazer nada” tem sido um modo de resistir ao homo faber piorado.
Pois bem, essa frase está presente na cena do filme Comer, rezar, amar. Um filme comum e cheio de clichês, mas que me proporcionou justamente uma interlocução estético-política com aquilo que tem sido meu compromisso desde que me tornei professor e pesquisador: a preocupação com um fazer acadêmico outro:
Há também outro aspecto que apenas pontuarei adiante: se vivemos diante de uma lógica de produção em série, de repetição e avalanches de automatismos, começamos a perceber como a atividade acadêmica, sob esse modo de fazer, tem adoecido as pessoas envolvidas nesse processo. Assim, a vida acadêmica como algo que adoece também me é questão fundamental. […] A vida acadêmica me é algo muito maior do que essas padronizações, repetições, essa produção fabril. Então, o termo “vida acadêmica” não deve estar aí à toa. Essa “vida” precisa ter ânimo mais amplo do que somente a mesmice que tem, entre outras coisas, nos adoecido4.
No filme, a personagem principal viaja para a Itália a fim de experimentar outras formas de se relacionar consigo mesma. Já na referida cena, ela está numa barbearia e comenta que, nas três primeiras semanas desde que chegou, a única coisa que fez foi aprender algumas poucas palavras em italiano e comer. Como sua fala soou como lamento utilitarista, um dos rapazes que cortava o cabelo a repreende duramente, dizendo que ela se sentia culpada porque era americana. O personagem continua sua crítica sarcástica ao nosso velho e conhecido “american way of life”.
Mas a questão aqui é outra. Seria como se eu quisesse sugerir um “fazer nada” ao nosso também velho e conhecido “scientific way of life”. Mas algo ainda me chega como incômodo. A maestria dos italianos, na “doçura de não fazer”, como bem exclamado no filme, é um privilégio. O “european way of life” anda lado a lado com o “american way of life”. O “scientific” não é, sobremaneira, algo descolado disso. Dizendo em outras palavras, palavras nada poéticas, a parametrização que nos é pautada pelo velho rabugento e pelo jovem arrogante está nos adoecendo. Passamos a nos tornar números, índices, medidas de troca. Nunca esteve tão barato o valor mercantil do saber: com meia dúzia de professores, um laboratório e outras dezenas de estudantes, se faz um “Qualis A1”. O adoecimento dos participantes desse processo, situados nas camadas menos privilegiadas, é apenas rejeito.
É, meu caro Manoel, o rejeito serve para a poesia, se tivermos liberdade e autonomia criativa. Na corrida pelos números, isso fica impossível, porque sequer aparece no horizonte sensível como possibilidade. É uma paisagem feita para nunca ser contemplada. Paisagem, desaparecimento… como aquela da “pedra do cachorro”:
As coisas estão aí e a gente não consegue ver.
Não é que não consegue ver,
Não consegue é entender.
Essa pedra mesmo, tá vendo? É a pedra do cachorro. Tá vendo?
É um cachorro deitado de costa pra gente.
Ó a cabeça do bicho estirada.
É um cachorro escritinho, sem tirar nem pôr.
Viu, né?
Tava aí, sempre teve.
Antes mesmo de existir cachorro, já tinha pedra.
Agora, só veio o cachorro muito depois.
Reparei quando me falaram: “olha, ali é a pedra do cachorro”.
Eu não via porra de cachorro nenhum.
Aí me disseram que tava deitado.
Aí, depois disso, só vi cachorro.
E nem sei como eu conseguia não ver.
Tá vendo? As coisas estão por aí e a gente não vê.
Sabe por quê?
Preconceito.
As pessoas só querem ver o que deixam.
É preguiça e preconceito.
É por isso que eu gosto de Raul Seixas: “Eu não gosto de opinião formada”.5
Então, Manoel, se a sua poesia diz que o conceito empobreceu a imagem, assim como você, eu rejeito o rejeito tornado rejeito. Esse é, pois, exercício de sentir-paisagem que aqui decidi compartilhar: sem finalidade alguma.
Agradecimentos
À Laila Padovani, pelo convite a colaborar com o Projeto Entre_Paisagens – poéticas do corpo em paisagens pandêmicas: criar comunidades para reavivar afetos com a cidade6.
Ao caro Herbert Farias, pela revisão.
Sobre o autor
Eu não sou um número de ORCID ou um link do Lattes.
1 Do filme Eat, pray, love. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=Gg3n9z5zuJg
2 Cf. https://www.infoescola.com/sistema-nervoso/meninges/
3 Cf. http://fisiovet.uff.br/wp-content/uploads/sites/397/delightful-downloads/2018/07/Glândula-pineal.pdf
4 Cf. Queiroz Filho, Antonio Carlos. Uma carta para mainha: sobre (minha) vida acadêmica – poéticas do desaprender e suas exclamações, interrogações e reticências… In: Aldo Gonçalves de Oliveira et al. (Org.). Linguagens do desaprender: gestos intensivos e política dos afetos. Porto Alegre: Evangraf, 2022, p. 62-63.
5 Cena do filme Árido movie (2005), dirigido por Lírio Ferreira. Cf. https://youtu.be/QhBQ64UwRIA?t=5515
6 Cf. https://www.instagram.com/_entre_paisagens/