Dos confins, algumas notas


resumo resumo

Karina Dias



Vocês, palavras, levantem, sigam-me e quando tivermos ido longe demais, iremos ainda mais longe, isso não tem fim...

(Ingeborg Bachmann)

 

O que se segue é como relato composto de notas avulsas, algumas escritas durante o confinamento e outras ao longo dos anos, juntas são pensamentos dos confins de um tempo recente que ainda nos olha.

 

Quando a casa torna-se cabana

Estivemos em casa por muito tempo, confinados até nos sentirmos exilados do mundo. Exilados do mundo, abandonados pela Terra. Como então nomear aquele que viveu a perda desse mundo? O que permanece como questão? A casa-forte que nos protegeu da eminente ameaça foi também o farol1 por onde observamos os movimentos da Terra. Se habitar é uma geografia (DELEUZE; PARNET, 1996, p. 159) é preciso reencontrar o seu relevo. Nesse estado-de-cabana permanecemos (i)móveis? Mesmo que solitárias, as cabanas abrem-se para a ideia de comunidade, são, como aponta Tiberghien (2014, p. 10), “um objeto de pensamento, um observatório: a comunidade ronda a cabana”. A cabana, segue o autor, é uma experiência que não envolve nem protege aquela que a habita, antes ela a expõe a si mesma. Penso em Thoureau (1985), que construiu a sua cabana no meio da floresta e nunca se sentiu só. Em sua casa havia três cadeiras: uma para a solidão, outra para a amizade e a última para a sociedade. A solidão, a amizade e o coletivo. De nossa cabana, o mundo nos observa. Somos observados pela vida que nos cerca. Penso em Camus (1939-53) e em seu poema Do mar bem perto:

 

... quando perdi o mar, todos os luxos passaram a ter para mim aparência opaca .... Desde então espero. Espero as naves de retorno, a morada das águas, o dia límpido. Aguardo pacientemente com todas as minhas forças muito bem brunidas” (CAMUS, 1939-53, n.p.).

 

Perder o mar e guardar o horizonte. As paisagens pareciam ter recuado, quando retornariam? Até quando ocuparíamos a “exígua faixa de terra” (MALDONADO, 2004) que é o nosso solo primeiro? Experimentar, então, de forma radical a casa. Refundar a morada, ser-cabana, percorrer os confins deste espaço de pequenas distâncias. O que resta da concretude do mundo? Penso em Kenneth White que propõe uma topologia mental, uma finisterra do espírito (WHITE, 1987). Nessa dinâmica, toda imagem fabrica distâncias, cria tempos distintos, é ponto de vista e ponto de contato, detalhe e panorama. Nesse desejo de espaço, espaçamo-nos... somos um corpo movendo-se no espaço (WHITE, 1994) criamos paisagem, inventamos lugares, deambulamos, talvez, em busca de um alhures possível... lá, onde estivermos. Todos os dias eu vou à minha biblioteca. Todos os dias eu abro aleatoriamente um livro e me pergunto: “onde poderia cair sem desastre?” (VALET, 2020, p. 169). Esse gesto se repete ao longo dos anos. Durante a pandemia anotei palavras lidas. Uma biblioteca é um mundo composto de geografias distintas, de vozes que vem de longe, de passado, presente e futuro, uma biblioteca pode ser atlântica, austral, boreal, pacífica, insular...

 

22/3

a terra

28/3

nos passos da lua

16/4

o vento, o relógio, o nós

30/4

o que levo nos bolsos

6/5

lições do vento

18/5

onze vistas dos pireneus

10/6

o passeio sob as árvores

20/6

as margens do silêncio

5/7

o voo noturno

19/7

e um dia

30/8

tomaram...

22/8

a terra

7/9

o atlas

8/9

os rios e as montanhas

4/10

os mapas

20/10

a antártica

2/11

o rochedo

5/11

em direção ao cume

22/12

a palavra que me leva

31/12

à beira do mundo crescem os carvalhos2

 

(a continuar)3


2  Ver Huidobro, Vicente. Poemas Árticos. Porto Alegre: Artes e Ecos, 2014, p. 56.

3  Texto em processo composto pelos títulos e palavras de alguns poemas lidos durante a quarentena de 2020: Laura Riding, Orides Fontela, Marina Tsvetáieva, Ana Martins Marques, Ingeborg Bachmann, Jules Supervielle, Kenneth White, Paul Valet, Tahar Ben Jelloun, Philippe Jaccottet, Bashô, Vicente Huidobro...

 

 

 

 

 

 

Notas sobre a queda:

Encontro, mais uma vez, durante a pandemia, as filmagens da queda de um glaciar realizadas em 20134. Vi inúmeras vezes a imagem da queda de um grande bloco de gelo e a minha tentativa frustrada de manter a câmera estável. Tudo despenca, meu olhar, o movimento da câmera, o gelo e todas as palavras ditas naquele momento. O urro coletivo das pessoas presentes diante da cena cede lugar ao silêncio, à imobilidade que acompanha tamanho deslocamento de matéria. Nunca esqueci da lentidão e do silêncio que sucederam esta queda. A onda provocada na água pela queda, repleta de estilhaços da geleira, foi substituída por uma espessa camada de gelo pesada e lenta, muito lenta, quase imóvel. Tudo aconteceu muito rápido, nada do que eu havia visto, minutos antes da queda, permaneceu. O mundo era outro.

Penso na pintura A paisagem com a queda de Ícaro5 (Pieter Bruegel, 1558), em que vemos um Ícaro de pernas para o ar em meio ao mar. Ícaro despenca sem provocar tremores, a vida segue e, se não prestássemos atenção, nem perceberíamos a sua presença em meio ao fluxo da vida que continua. Christine Buci-Glucksmann analisa a obra de Bruegel como uma “geografia do olhar” (BUCI-GLUCKSMANN, 1996, p. 13), nela somos um ponto terrestre. A queda de Ícaro, como comenta a autora, não é aquela dos condenados. Ela abre antes de tudo uma poética do voo: “é preciso ter asas quando se ama os abismos” (NIETZSCHE apud BUCI-GLUCKSMANN, 1996, p. 19). Asas para voar, para vencer o abismo e desafiar o risco do infinito, como escreve a autora (BUCI-GLUCKSMANN, 1996, p. 19).

Criar, então, em pleno voo novas táticas, outras possibilidades de partilha. Partilha do espaço urbano e não urbano, novas configurações dos espaços habitados, das pessoas com as quais convivemos, novas estruturas de pensamento e ação. Estamos à procura de um destino. E me pergunto, por onde recomeçar? De onde reencontrar a paisagem perdida? Temos para onde ir? Nesse movimento, somos aqueles que o abismo viu...6

 

 

 

Imagem 1 - Karina Dias, Queda, 2023 – vídeo-objeto, detalhe.

Acervo da artista.

Notas sobre o horizonte:

Qual o nosso lugar na extensão que nos circunda? Nessa fenomenologia da extensão, o horizonte é fabuloso (COLLOT, 1998) porque sinaliza o limite do olhar, do seu alcance, para revelar o que daí se desenha. Ao mesmo tempo em que atesta que para além deste contorno, o mundo continua, que esse desenho não se esgota em meu ponto de vista, estendendo-se para além do que se vê para tornar-se a paisagem vista/vivida por outrem. Para além do horizonte, está o (in)visível que nos acompanha, a imensidão que se faz sentir. Nesse movimento, solicitamos o horizonte para que o mundo à nossa volta tenha lugar.

Se o horizonte torna a paisagem mensurável é porque nos posiciona como observadoras do limiar, e esse lugar parece ser aquele que nos situa no limite. Estar no limite, no limiar, é estar no momento preciso em que estamos em uma zona de instabilidade - nem lá e nem cá, aqui e ali - que separa o agora do outrora, o presente do vir-a-ser, que possibilita que o tempo seja sempre outro. Estar no limiar de uma visibilidade que indaga, que nos posiciona na iminência de ver outra coisa, “outra coisa sem que houvesse nem distância, nem ar, nem movimento; o longínquo que irrompe, que chama” (JACCOTTET, 1976, p. 40).

Aproximo-me, então, da minha janela e olho com uma câmera voltada para o horizonte.

 

Notas sobre a janela:

Ir à janela e estabelecer contato, num desejo de se lançar em direção ao outro e de se sentir em casa. A janela é uma estrutura que separa, não somente porque ela nos confina em nossa intimidade, mas porque nos permite tecer as relações com o espaço que nos cerca, desde que abramos as cortinas: “[...] para estabelecer um vínculo é preciso estar um pouco separado. É assim. É preciso, de uma forma ou de outra, se sentir em casa, um pouco só, isolado, ter uma certa distância para poder se dirigir aos outros, o exterior, e constituir com eles uma relação” (WAJCMAN, 2004, p. 13).

Palavras de uma atualidade extrema. Estar confinado e desejar ir ao encontro do mundo. E esse movimento parece ser ditado pela relação que estabelecemos entre intimidade e exterioridade, em meio às modulações que nos aproximam do espaço porque dele nos distanciamos. Nessa perpétua circulação, o olhar entoa a sua (com)posição. E nossas casas, em plena pandemia, se transformaram em faróis de onde olhamos para fora e sinalizamos: ainda estamos aqui.

Evocar a janela para a visualização de uma paisagem é relembrar que ela foi, nas pinturas flamengas de artistas como Robert Campin e Jan van Eyck, o elemento decisivo para que a paisagem fosse “inventada”. Essa abertura no interior da pintura significou uma janela para o mundo, uma nova abordagem do mundo exterior.

Alain Roger (1997) aponta que a janela é a moldura que isola e enquadra, transformando, na pintura, o território em paisagem, “[...] de onde concluo que essa última entrou verdadeiramente pela pequena porta, ou melhor dizendo, pela pequena janela, antes que essa tivesse se expandido às dimensões de todo o quadro [...]” (ROGER, 1997, p. 118). A janela é um meio de isolar as partes do mundo envolvente, amplificando assim o seu valor estético.

Penetrando a cena da perspectiva tradicional, a janela nos convidaria a percorrer naturalmente a paisagem. O autor acrescenta que o enquadramento e a janela implicam a veduta, isto é, uma vista que seria a reprodução de um aspecto da realidade natural. Como nos diria Wajcman (2004), é o enquadramento, numa janela, de um fragmento da natureza que se encontra no final da rua.

Penso em Janela I (2009), uma vídeo-projeção de minha autoria que apresenta uma paisagem silenciosa filmada no decorrer de 12 meses, onde se pode observar diferentes momentos (dia, noite, bruma, chuva, sol, crepúsculo, amanhecer...). Esses momentos são apresentados sob a forma de um panorama, em três frestas contíguas, num ritmo que impede a visão completa de cada uma das vistas apresentadas. Emerge daí uma paisagem impossível, composta de momentos incongruentes, intensificando-se a noção de que a paisagem é o que vemos, mas, sobretudo, o que imaginamos. A espectadora acompanha então a fusão das imagens, a fragmentação das vistas e a impossibilidade de tudo ver.

Imagem 2 - Karina Dias, Janela 1, 2009, frame.

Acervo da artista.

 

Poderíamos pensar, entre outros aspectos, que é no movimento criado pela série de fragmentos e pelas ligações que estabelecerá cada espectadora que um novo conjunto se desenha a cada mirada. Nesse trabalho, assumi o mesmo ponto de vista para olhar, por meses, a mesma paisagem. (I)mobilidade que me conduziu a vê-la do interior, a me sentir íntima de suas direções, para (re)ver o mesmo que já é outro. Nessa duração, não se precipitar. Aceitar o tempo e não temer a espera. Escutei que esperar é um gesto.

 

Notas sobre a cidade

Como interromper, mesmo que momentaneamente, nossa percepção rotineira para que se instale uma percepção inusitada, uma experiência sensível do nosso espaço de todos os dias? Como, por meio da prática artística, o espaço rotineiro da cidade vai se revelando como uma paisagem singular, como um espaço-em-paisagem? Estar com a cidade, habitar a sua paisagem e transformá-la em matéria poética7.

Se pensarmos o cotidiano como um conjunto de percursos e situações que se repetem dia após dia, nos pressionando, nos impondo o peso de certa maneira de viver, a experiência da paisagem seria então, a suspensão. Se o cotidiano nos atinge e nos aflige, nos aprisiona, a paisagem emancipa. Uma paisagem que se revelaria em meio às situações rotineiras e banais, em um movimento acelerado de pontos de vista distintos, ela é passagem, um deslocamento do olhar. O banal nos olha.

A experiência da paisagem no cotidiano se forjaria, então, na junção de uma certa maneira de olhar e dos caminhos percorridos. Ela tomaria forma a partir de detalhes corriqueiros que por serem vistos e (re)vistos continuamente se tornariam invisíveis aos nossos olhos. Nesse espaço urbano que acreditamos dominar tão bem, que nos adormece porque deixamos de vê-lo, a paisagem impõe a distância que nos fará (re)ver a cidade que nos circunda. Desse lugar, estamos sempre na iminência de ver e não ver, de apreender ou deixar escapar o que se apresenta diante dos nossos olhos. A paisagem cotidiana se encontraria então, a todo o momento, no limiar da visão, entre a possibilidade de ser ou não percebida, de passar do estado de não visão para a visão. Ela estaria lá, sempre na iminência de aparecer, à espera de que a habitante atenta da cidade reconheça o seu contorno.

Como nos lembra Michel Collot (1989), as coisas se dão somente em um horizonte, isto é, sob uma aparência e com uma configuração cambiantes que diferem de um ponto de vista e de um momento a outro, e segundo uma relação que vai do determinado ao indeterminado. (Re)ver a cidade é se dar conta, a um só tempo, da extensão que nos circunda e dos pormenores que a compõem. Sonhar a cidade, reencontrar o seu caminho. A rua pulsa dentro e fora de nós. Sentir a cidade, estar incluída em seu movimento. Nunca esquecemos a amplitude da paisagem, mesmo aquelas confinadas em nossa memória. Apesar de distantes das geografias vividas, a brisa do vento sopra, o ruído da metrópole se faz sentir. Nessa reserva da memória guardamos um pouco do mundo.

Desejamos estar ao ar livre, percorrer a paisagem, contemplar a cidade. Nesse estado-de-cabana vivido, vivemos as distâncias. Reencontrar, então, as pistas que nos reconduzirão ao lado de fora, a reencontrar os elos perdidos, a ativar novas alianças com as plantas, com os animais e com os humanos para, quem sabe, podermos novamente sentar num banco, contemplar as árvores, escutar as feras8 e caminhar corajosamente.

 

Imagem 3 - Karina Dias, Souvenir-Brasília, 2011, vídeo-objeto, detalhe.

Coleção Sérgio Carvalho.

 

Notas sobre paisagem

Qual o nosso lugar na extensão que nos circunda? Em tempos de pandemia, tentativas de golpe e usurpação do poder democraticamente eleito, somos convocados a acionar nossos corpos para estarmos presentes, para estarmos em movimento e do lado de fora. Em momentos de crise, como pensar em paisagem, ou melhor, como não pensar em paisagem? Reencontrar o mundo, habitar o seu relevo, estar com a paisagem... mover-se.

A paisagem é presente, ela nos torna sensíveis à força do presente. A paisagem é ponto de vista e ponto de contato, ela é ponto de vista e ponto de vida como nos lembra Coccia (2018). A paisagem é vista e sentida, vivida, percorrida por um corpo que habita o seu relevo. Corpo-medida que sente o terreno que pisa, o ar que respira e o vento que sopra. Corpo-sismógrafo que registra as alterações provocadas pela topografia percorrida. Corpo que acolhe e resiste ao espaço. Corpo que habita uma paisagem em meio à qual insiste em mover-se. Em meio à qual está absolutamente. Da fresta entreaberta entre o céu e a terra, emerge a distância que faz ver, a distância que nos (des)orienta. A paisagem, como escreve Gérard Wajcman (2004), é o olho que avança, é o traçado do olho na espessura do mundo.

A paisagem é a presença da Terra. O que faz, então, a Terra aparecer, indaga o geógrafo? Não esquecer a nossa condição terrestre e o nosso destino coletivo. Pela paisagem chegar e pela paisagem partir. Lembro-me de Agnès Varda (2013) que entoa, como sabemos: “Se você abrir uma pessoa, encontrará paisagens [...]”. Quantas paisagens são o lugar de nossa existência? Viemos sempre de uma paisagem. Nessa relação nem sempre fraternal com o espaço, um horizonte se desenha e nos lembramos que somos distâncias e que o espaço, como escreve Perec (2000), é sempre uma dúvida. A experiência da paisagem não cabe na descrição, o efeito de sua presença é uma ação permanente que não deixamos de sentir. A Terra se inscreve em nós, ela nos acompanha.

Anne Cauquelin (2000, n.p., tradução nossa) nos lembra que “fabricamos a paisagem, usamos ferramentas, enquadramos, colocamos a distância, utilizamos todos os recursos da linguagem”. Na realidade, continua a autora, trata-se de aperfeiçoar a conveniência de um modelo cultural com o conteúdo singular de uma percepção. Talvez esteja aí a urgência, esgarçar a moldura, reatar com as margens esquecidas, reativar outras bordas, desfocar, esfumaçar enquadramentos que excluíram por tempo demais nossas margens do centro dominante. Escutar geleiras, ouvir o tempo da pedra, repousar no horizonte, inquietar-se paisagisticamente. Reencontrar o sopro que anima a paisagem, estar sobre a terra e sob o céu. Lembrar que somos seres sublunares e que a terra é uma parcela do céu.

A paisagem é uma experiência sensível do espaço. É o sufixo “-agem” que vem inscrever no país/território a sensibilidade de um olhar. (Olhar encarnado, nunca é demais lembrar). Nunca é demais relembrar também que paisagem vem de país. Que paisagem nos porta? Qual é a nossa paisagem comum? Que país portamos? Dessa relação profunda com o espaço e com a história, a paisagem está sempre à espera daquela que chegará. Viemos sempre de longe. A paisagem indaga: onde está, onde se está? Lembro-me dos versos de Michel Collot: “Na falta de um país, escrevo paisagens” (informação verbal)9. E também dos versos da poeta Laura Riding (2004, p. 151): “Não tenho medos extensos da Terra: [...] A Terra é o coração que erra [...]”.

Se a paisagem é a medida do olhar que silencia o ruído, ela também é onde a terra e o céu se tocam (CORAJOUD apud ROGER, 1995), um movimento mínimo e uma revolução máxima, sempre entre visão e invisão (DIAS, 2010) essa ressonância interna que nos confirma que a paisagem é mais que um simples ponto de vista óptico. Nessa justa aliança que une o lado objetivo daquilo que vemos com o lado subjetivo, íntimo a cada um de nós, a paisagem é um como-ver-se. Um ver de dentro que se desdobra no fora. Estar incluído e saber-se distância. Nesse movimento nem sempre dócil, o olho que olha é também o que sonha.

Notas do fim:

No exílio-morada-exílio dos tempos pandêmicos lembrar que há muitos nomes para os ventos, que somos distâncias, somos paisagem e que ela, a paisagem, pode morar na palavra. E que as palavras podem armazenar o horizonte, condensar o mundo, sustentar a sua arquitetura. Habitar então todas as línguas, escutar uma língua muda, praticar uma língua nômade, encontrar as palavras corajosas (GALLIENNE, 2020), indagar os nomes. Reencontrar o caminho de volta à Terra, sem esquecer que “bastaria um movimento de distração para afogar os cinco continentes. O mar não tem remorso...” (JABÈS, 1975, p. 345).

 

Notas sobre o futuro:

E o futuro, onde está? No que não tem nome, mas está, no espaço entre as coisas, em todos os lugares não visitados, em todas as latitudes não percorridas, no Sul, no extremo sul, no sul extremo. No alto da montanha, na beira do rio, no jardim selvagem, na ilha que nos convida a ter o ponto de vista do mar (HAMON, 2020), no violonista que tocou na floresta e as árvores reagiram ao escutá-lo, nas insurgências botânicas10, no piano tocado por cinco pessoas juntas, na noite que nos lembra que temos o mesmo sangue das estrelas (CLANCY, 2004), na viagem que não acaba, no não visto, no não dito, na fronteira avistada. No desencontro entre a palavra e a imagem, nos ventos catabáticos, nos sonhos feitos de maré, areia e navios, na pedra que não está morta, no pavio que se ergue quando um olhar o inflama11, nas palavras corajosas, no grito de alerta, no livro aberto aleatoriamente todos os dias. Nas cicatrizes do atlas12, na flor-de-todo-ano, na mesa do poeta, na beleza das coisas… lá, onde estiver, há alguém no vento (GUILLEVIC, 1942, p. 71).

 

Referências Bibliográficas

BACHMANN, Ingeborg. O tempo adiado e outros poemas. São Paulo: Todavia, 2020.

BUCI-GLUCKSMANN, Christine. L’oeil cartographique de l’art. Paris: Editions Galilée, 1996.

CAUQUELIN, Anne. L’invention du paysage. Paris: Quadrige: PUF, 2000.

CAMUS, Albert. Diários de viagem. O verão. 1939-1953. Revista Pandora Brasil (site). Disponível em: <http://revistapandorabrasil.com/camus/caumus_do_mar_bem_perto.htm> Acesso em: 12 mai. 2023.

CLANCY, Geneviève. Les Cahiers de la nuit. Paris : L’Harmattan, 2004.

COCCIA, Emanuele. A vida das plantas, uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.

COLLOT, Michel. La poésie moderne et la structure d’horizon. Paris: PUF, 1989.

COLLOT, Michel. L’horizon fabuleux, I, XIX siècle. Paris : Librairie José Corti, 1998

CORAJOUD, Michel. Le paysage c’est l’endroit où le ciel et la terre se touchent. In: ROGER, A. (org.) La théorie du paysage en France, 1974-1994. Seyssel: Champ Vallon, 1995.

DIAS, Karina. Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília: ed. PPGAV/UnB, 2010.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1996.

GALLIENNE, Alice. L’autre moitié du songe m’appartient – poèmes. Paris : Gallimard, 2020.

GUILLEVIC, Eugène. Terraqué. Paris: Gallimard, 1942.

JABÈS, Edmond. Le seuil et le sable. Poèsies Complètes 1943-1988. Paris : Gallimard, 1975.

JELLOUN, Tahar Bem. As cicatrizes do atlas. Brasília: ed da UnB, 2003.

HAMON, Hervé. Dictionnaire amoureux des Îles. Paris: Plon, 2020.

HUIDOBRO, Vicente. Poemas árticos. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2018.

MALDONADO, Mauro. Raízes Errantes. São Paulo: editora 34/SESCSP, 2004.

PEREC, George. Espèces d’espaces. Paris: Galilée, 1974-2000.

RIDING, Laura. Mindscapes. Poemas. São Paulo: Iluminuras, 2004.

ROGER, Alain Court traité du paysage. Paris: Gallimard, 1997.

THOUREAU, Henri David. Walden ou a vida nos bosques. São Paulo: Global editora, 1985.

TIBERGHIEN, Gilles. Notes sur la nature, la cabane et quelques autres choses. Paris : Félin, 2014.

VALET, Paul. La parole qui me porte et autres poèmes. Paris: Gallimard, 2020.

VARDA, Agnès. As praias de Agnès. Instituto Moreira Salles, 2013.

WAJCMAN, Gérard. Fenêtre chronique du regard et de l’intime. Lagrasse: Editions Du Verdier, 2004.

WHITE, Kenneth. Le poète cosmographe – Entretiens. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 1987

WHITE, Kenneth. Le Plateau de l’Albatros: introduction à la géopoetique. Paris : Grasset, 1994.


1  Em sua dissertação de mestrado, em fase final, intitulada Terra caídas, como navegar em águas rasas – sob orientação de Karina Dias (UnB), a artista Raíssa Studart vem desenvolvendo a compreensão de sua casa como um farol.

4  Essas imagens se transformaram no vídeo-objeto Queda que faz parte da exposição Como chegar, como partir, individual da artista Karina Dias na Galeria Referência em Brasília. Curadoria de Emerson Dionisio.

5  Para uma análise mais aprofundada desta obra, ver Buci-Glucksmann, Christine. L´oeil cartographique de l’art. Paris: Galilée, 1996. Ver também BESSE, Jean-Marc. Ver a terra. Seis ensaios sobre paisagem e geografia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

6  Em referência à epopeia de Gilgámesh intitulada Ele que o abismo viu. Tradução do Acádio, introdução e comentários de Jacyntho Lins Brandão. BH/SP: Autêntica Clássica, 2020.

7  Muitos de meus trabalhos em vídeo surgem de uma intensa experimentação na paisagem do local filmado, são fruto de um tempo vivido em extensas geografias (urbanas e não urbanas) e sua realização inclui caminhar, observar e filmar.

8  Em referência ao livro Escute as feras de Nastassja Martin, publicado em 2021 pela editora 34.

9  Entrevista concedida por Michel Collot ao programa Pas la peine de crier da rádio France Culture intitulada “La pensée-paysage”. Transmitido em 15 abr. 2013.

 

10  Nome da instalação da artista Ximena Garrido-Leca apresentada na 34ª Bienal de São Paulo.

11  Versos de vários poemas de Ingeborg Bachmann reunidos em O tempo adiado e outros poemas. São Paulo: Todavia, 2020.

12  Título do livro de Tahar Ben Jelloun publicado pela editora da UnB na Coleção Poetas do mundo, 2003.