Favela da Maré: a comunicação comunitária como geradora de mudança social


resumo resumo

Gizele Martins
Raquel Paiva



 

1. Contexto

Cerca de 54% dos brasileiros garantem que fogem do noticiário colocando o país como o terceiro no mundo atual da categoria dos que propositadamente evitam o contato com as notícias. Esta foi a constatação da Digital News Reporter de 20221, pesquisa que vem sendo realizada anualmente pelo Reuters Institute desde 2012. A explicação dada pela grande maioria é que as notícias têm um efeito negativo sobre seu estado emocional. O quadro se acentuou com a chegada da pandemia do novo coronavírus. O cenário brasileiro com relação ao jornalismo se encontra bastante deteriorado e o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, foi um dos grandes responsáveis por atacar frequentemente a produção jornalística e os jornalistas.

O cenário atual é de bastante complexidade na área da comunicação, tendo sido o país a perder o maior número de jornalistas (330) durante a pandemia da COVID-19. Dados importantes demonstram que a informação dos brasileiros se concentra nas redes sociais, sendo o Facebook o primeiro na lista com 64% dos brasileiros, o YouTube com 43%, Instagram com 35%, WhatsApp com 41%, TikTok com 12% e Telegram 9%.

A questão do estado emocional é importante, mas também desponta como um dado preocupante o fato de que a confiança nos veículos também decresceu, fato produzido também pelo conhecimento cada vez maior de que a concentração sobre a propriedade dos meios persiste nas mãos das mesmas famílias e seus conglomerados. Todos esses dados colocam o Brasil no topo da pesquisa despontando como a população com maior indiferença e descrença em relação às notícias.

A esses dados recentes, acrescentam-se os índices cada vez mais baixos sobre os dados de escolaridade, aliada à alta evasão escolar em todos os níveis, sem deixar de mencionar as crescentes taxas de desemprego. Estas são informações que permitem configurar um panorama de baixa vivência cidadã e consequentemente da possibilidade de superação do atual estado de apatia. O papel da imprensa livre e combativa é um dos fundamentais pilares para a consolidação do sistema democrático e a possibilidade de superação das enormes e profundas desigualdades sociais que cada vez mais marcam o país, como tem sido ensinada desde John Dewey em “Democracia em Educação” (1959), por exemplo.

Nesse contexto, configura-se cada vez mais como sendo de grande importância a atuação e presença da comunicação comunitária, na medida em que não apenas traz a informação, mas principalmente por representar uma concreta possibilidade de interpretação da complexidade do mundo atual e finalmente por ser uma via permanente de intervenção na realidade das populações historicamente deixadas à margem. O que este trabalho pretende demonstrar com o estudo sobre os veículos digitais é o quanto a comunicação comunitária tem se adaptado aos tempos atuais, com linguagens e tecnologias que reduzem a distância entre produção e consumo de notícias e configura-se cada vez mais como alternativa no vazio deixado pelas grandes corporações de notícias.

 

2. A Favela da Daré

A Favela da Maré, de acordo com o Censo Maré 2010, é formada por um conjunto de 16 favelas e com população aproximada de 140 mil moradores. Está situada em um ponto estratégico para a mobilidade da cidade, uma vez que em torno dela estão as principais vias expressas da cidade: Linha Amarela, Avenida Brasil e Linha Vermelha. As favelas que formam todo o conjunto são: Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Parque Maré, Nova Maré, Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque União, Conjunto Esperança, Conjunto Pinheiros, Vila do Pinheiro, Vila do João, Salsa e Merengue, Marcílio Dias, Roquete Pinto, Praia de Ramos, Bento Ribeiro Dantas e Mandacaru. Importante mencionar, ainda, que a Maré é considerada o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro e seu surgimento se deu na virada dos anos de 1930 para 1940. Os primeiros moradores vieram do Nordeste do país para a construção da Avenida Brasil, formaram suas casas na beira da avenida, construíram suas palafitas e, aos poucos, foram aterrando e fazendo nascer essas 16 favelas ao longo das décadas.3

A história do território da Maré é marcada pela organização interna dos próprios moradores assumindo a ausência do estado, desde os pré-vestibulares comunitários, mídias comunitárias, assembleias em praças públicas, mobilização para a chegada da caixa d’água, iluminação, dentre diversos outros direitos conquistados ao longo dos anos. Um deles foi concluído com bastante atraso e pressão dos moradores, que reivindicavam o término das obras, o Projeto Rio promoveu modificações na infraestrutura urbana da Maré, desde a rede de abastecimento de água e canalização do esgoto, passando pela regularização da rede elétrica e arruamento. Durante sua implementação, foram construídos os primeiros Conjuntos Habitacionais da Maré, que passaram a abrigar os moradores retirados dos barracos e palafitas: Vila do João, Conjunto Pinheiro, Conjunto Esperança e Vila do Pinheiro2.

Segundo o Instituto Pereira Passos, explicando a origem da Maré, a população de todo o conjunto é formada, em sua maioria, por pessoas de origem negra, indígena e nordestina, com baixa renda familiar, com baixo nível de escolaridade e estando à margem da sociedade. Em grande parte, estes moradores são integrantes do mercado de trabalho informal e criam as suas próprias formas de sobrevivência ao longo dos anos, muitas delas de forma coletiva (SILVA, 2006).

A Maré se destaca das outras favelas porque, por exemplo, nela foi construído, o primeiro museu dentro de uma favela no mundo, o Museu da Maré, que este ano completou 16 anos. Ela se destaca também por sua produção de mídias comunitárias. Para um espaço que historicamente sempre foi deixado de lado por todos os governos, a comunicação comunitária tem sido um importante instrumento de mobilização social e também de intervenção efetiva na vida quotidiana dos moradores. É na Maré que nasce, por exemplo, um dos jornais mais antigos dentro de uma favela no Rio, o Jornal O Cidadão, uma produção do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré junto ao Laboratório de Estudos de Comunicação Comunitária (LECC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao longo dos anos, outras mídias comunitárias surgiram em todo o conjunto de favelas. Hoje, algumas delas estão indo além do impresso ou de outras ferramentas tradicionais de comunicação e estão atuando também nas redes sociais.

Com foco nessa produção da comunicação comunitária da Maré, para complementar este artigo, foram feitas entrevistas com integrantes de diferentes mídias comunitárias da Maré. Algumas delas foram presencialmente e outras enviaram suas respostas online. Para cada uma das mídias, foi produzido um formulário com as seguintes perguntas: histórico das mídias; quando surgiram e se o trabalho inicial era impresso e passou a ser digital; por que passou a ser digital; quais temáticas abordam; alcance nas redes sociais; quais mídias digitais cada uma delas atuam e número de seguidores. Também foi perguntado sobre as maiores dificuldades de se manter os meios de comunicação, sejam eles de atuação de rua, impresso ou digital, dentro de uma favela como a Maré. Abaixo estão os depoimentos de algumas destas mídias que se destacam hoje na Maré:

2.1. Frente de Mobilização da Maré (Mídias tradicionais e redes sociais)

 A Frente de Mobilização da Maré é um coletivo de comunicação comunitária que teve início em março de 2020, no auge da pandemia da COVID-19, para divulgar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) com linguagem adequada e a partir das particularidades da favela. Inicialmente, o coletivo fez um plano de comunicação voltado para as 16 favelas da Maré. Este plano pretendia atingir os mais diversos públicos da favela, por isso, foram utilizados diferentes tipos de ferramentas de comunicação. O grupo atuou com impressão de cartazes, faixas, carro de som, bicicleta de som, rádios post, grafite de rua, podcast, além da atuação nas mídias digitais como: Podcast, páginas no Instagram, Facebook, Lista de transmissão no Whatsapp, Tik Tok, YouTube, Flickr e site para armazenamento do conteúdo fotográfico e matérias.

Para além da atuação na comunicação comunitária, o grupo começou uma ação social dentro da Maré, já que o número de famílias em estado de carência alimentar, sem acesso à água, máscaras e remédios estava aumentando. Em 2020, o coletivo atendeu cerca de 4 mil famílias com cestas básicas e kits de higiene. Em 2021, 400 famílias por mês foram atendidas. Já em 2022, foi montada uma cozinha solidária para atender as famílias ainda mais vulneráveis da Maré. Para todo este trabalho, as redes sociais foram fundamentais e foram utilizadas tanto para atingir os moradores da Maré com informações sobre os cuidados para a não transmissão da COVID-19, quanto para tentar visibilidade externa. Isto porque foi e ainda é pelas redes sociais que conseguiram e ainda conseguem doações, tendo dentre os maiores doadores de máscaras, alimentos e álcool, os moradores de outros bairros da cidade do Rio de Janeiro.

Vanusa Borba, que integra a Frente de Mobilização da Maré desde 2020 e, hoje, coordena a Cozinha Solidária da Frente, em entrevista para este artigo, fala sobre como funciona o coletivo.

 

Eu ajudo de todas as formas, escrevo projeto em editais, faço organização financeira, cozinho na cozinha. Todos atuam desta maneira. Quando foi criada a Frente nos dividimos em grupos de trabalho (GTs): Comunicação; Financeiro; Captação; Cozinha e Mobilização. Nestes GTs, organizados pelos grupos de WhatsApp, nos organizamos para lidar com as demandas da Frente. Naquela época, éramos 100 voluntários, o que permitia esse tipo de organização. Hoje, com a redução das doações e dos voluntários para 30 pessoas, fazemos de tudo. (BORBA, 2022)3.

 

Vanusa falou ainda sobre a atuação da Frente nas mídias digitais, que desde o início tem o objetivo de levar informação de qualidade para a favela.

 

Sem entraves na língua, combatendo as fakes news, com uma linguagem fácil, usando de todos os meios para atingir o maior número de pessoas, tudo baseado na ciência. A gente também produz um boletim para pessoas cadastradas no nosso mailing. E quando ele é divulgado, o número de doações aumenta. Mas como fazemos de tudo, acaba faltando tempo para escrever (BORBA, 2022)4.

 

Ela complementa dizendo que nestes poucos anos do coletivo, eles passaram a ser convidados para falar da experiência em diferentes espaços, participam de encontros de comunicação comunitária, fazem parcerias com coletivos de outras favelas e instituições de dentro e de fora da favela.

 

2.2. Agência Palafitas (Dados e redes sociais)

A Agência Palafitas é uma agência de comunicação que surgiu em 2021 para formular ações/campanhas sobre temáticas voltadas para a favela da Maré. Este grupo, formado por cinco pessoas, oferece oficinas de comunicação, estratégias de comunicação voltadas para favelas e constrói identidades visuais para pequenos comerciantes e grupos de favelas. Para José Bismarck, fotógrafo da Agência Palafitas, a ideia é potencializar a comunicação para empresas, movimentos, organizações, coletivos, produzir pesquisa e coleta de dados sobre problemas sociais etc.

 

A Agência é feita para melhorar nossa atuação comunitária, mas para que a gente consiga também aprender a cobrar por serviços que - geralmente - a gente faz de graça para outros grupos. Queremos melhorar nossa atuação nas redes sociais, mas precisamos de bons equipamentos e acesso à internet de qualidade. Com os valores dos serviços que oferecemos no ano passado, a gente conseguiu comprar um computador para editarmos um filme que fomos contratados para produzir. (BISMARCK, 2022)5.

 

Em 2021, a partir das páginas do Instagram, Facebook, Twitter e da lista de transmissão do WhatsApp, eles produziram um formulário para saber quais locais da Maré estavam sem água naquele período. O formulário foi enviado/divulgado pelas redes sociais e por listas de transmissão do WhatsApp, essa lista de transmissão foi feita para ter contato com os moradores e informar sobre a pandemia, mas também para mobilizar contra a privatização da Cedae naquela época. A partir da coleta dos dados, foram produzidas reportagens escritas e audiovisuais sobre a temática. Esses dados foram utilizados em audiências públicas contra a privatização da Cedae e foram utilizados como denúncia pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostrando que inúmeras favelas estavam sem água durante a pandemia.

 

2.3. Jornal O Cidadão (Impresso e redes sociais)

O Jornal O Cidadão existe há 23 anos, seu trabalho iniciou em tempos que as redes sociais ainda não existiam. O periódico existiu por mais de 15 anos, sendo impresso por uma antiga editora que se instalava na Maré. Atualmente, a equipe do Jornal O Cidadão atua nas redes sociais, inclusive, continua fazendo um trabalho de memória resgatando figuras históricas da Maré que em algum momento já deu entrevista sobre seus trabalhos na época do impresso. Hoje, O Cidadão tem site, Instagram, Facebook, YouTube, Linktree.

Carolina Vaz, de 30 anos, coordenadora do Jornal O Cidadão, afirma que hoje fazem parte do jornal duas jornalistas e uma voluntária comunicadora. O trabalho cotidiano do O Cidadão envolve produção de reportagens sobre a Maré, com temáticas que elas acham interessante de investigar e que sejam de interesse do público-alvo. Também cobrem eventos do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e do Museu da Maré.

Carolina diz que na falta do impresso, produzem conteúdo para o site. Já nas redes sociais publicam notícias, reportagens, divulgações para além do que é publicado no site. Atualmente, fazem parcerias também.

 

Em 2021, fizemos parte do Se Liga no Corona, da Fiocruz, por exemplo. Em épocas anteriores do O Cidadão, ele era o único jornal na Maré, era o único a representar a memória mareense. Hoje, além de ter outros jornais e mídias digitais, o Jornal encontra-se em um momento diferente em que ele não detém mais essa exclusividade. Um dos pontos mais importantes é ele se manter atuante, são 23 anos de jornal (VAZ, 2022)6.

 

Ela argumenta ainda que “É muito importante fazer jornalismo comunitários dentro da favela, manter a tradição de procurar, entrevistar as pessoas de dentro e saber o que elas fazem, e fazer com que elas se sintam importantes".

Carolina descreveu ainda que a dinâmica é fazer com que alguns moradores saiam no jornal e os outros acessem/procurem o jornal porque ali há uma notícia positiva, relevante, crítica, ética e com credibilidade sobre o seu território. "Seria ideal a gente ter uma sala ventilada com computadores, internet, um espaço para ele funcionar como era antes”. Essa infra-estrutura propiciaria ter mais gente atuando. Ela também considera que seria muito bom se pudessem conseguir pagar mais pessoas, inclusive porque gostariam de ter uma pessoa com formação e habilidade para as redes sociais para ampliar o alcance. “Queríamos colocar uma matéria por dia nas redes e mantê-las atualizadas todos os dias. Mesmo com duas pessoas trabalhando nele hoje e remuneradas, isso não é possível”, concluiu a jornalista.

 

2.4. Coletivo Maré Vive (Redes sociais)

Pode-se dizer que os perfis do “Maré Vive” nas redes sociais são os que mais têm destaque virtual na favela da Maré. Este coletivo surgiu em 2014 com uma página no Facebook. Em menos de uma semana, essa página chegou a mais de 100 mil seguidores. Por semana, ela mantém uma média de mais de 500 mil visualizações, chegando às vezes a mais de um milhão. Ao longo dos anos, este grupo fez um perfil no Instagram e mantém mais de 20 mil seguidores. Eles também fizeram uma página no Twitter e hoje tem 12 mil seguidores.

Anisio Borba, que integra o Maré Vive há cinco anos, diz que a equipe tem cinco voluntários e que ainda hoje sofrem com falta de equipamentos, internet e abordou sobre as ameaças constantes que recebem por causa do conteúdo que divulgam. Ele lembra que "a página do Facebook surgiu para falar das violações do Estado. Em dias de operação policial é por ela que os moradores se informam e nos informam como está o clima da favela." É por ela que há a comunicação entre os moradores, eles pedem ajuda por ali, dizem as ruas que podem passar ou não, é uma forma de se proteger.

Em dias como estes de operação policial, a página além de receber e divulgar denúncias (sem expor as pessoas que denunciou), também entra em contato com as organizações de direitos humanos e órgãos públicos para pedir ajuda: "depois disso fazemos uma análise de quais foram os tipos de violações, quais aparatos bélicos utilizaram, quais os tipos de policiais agiram, além de número de mortos e feridos. Esses dados são utilizados em audiências e relatórios”, reforça Anísio.

Além da atuação no Facebook, nos dias de operações policiais recebem muitas denúncias pelo grupo no WhatsApp, onde mantém um grupo do próprio Maré Vive, que ativaram graças a um celular que conseguiram comprar e através do qual mantém comunicação direta com os moradores. Além das organizações de direitos humanos e órgãos públicos, a mídia comercial também utiliza bastante os dados divulgados nas páginas do Maré Vive, mas nem sempre dão os devidos créditos.

 

2.5. Coletivo Maré 0800 (Redes sociais e rua)

O Coletivo Maré 0800, formado por cinco pessoas, surgiu em 2016, é um grupo que tem perfis no Facebook e no Instagram. O Facebook é a página que o grupo divulga e pede doações de roupas, sapatos, bolsas, livros, brinquedos e por ali organizam as buscas de doações e, durante um dia no mês, fazem a distribuição pela favela da Maré. A divulgação de ação do Maré 0800 é feita pelas redes sociais. O objetivo do grupo é trabalhar a comunicação comunitária a partir da solidariedade A ideia é conseguir que os moradores participem do dia de ação e, assim, seja feita uma comunicação presencial, direta, uma conversa sobre temas diversificados relacionados à realidade da favela com os integrantes do Coletivo Maré 0800.

Rosa Ferreira, de 41 anos, professora de língua portuguesa, contou que no Maré 0800 a atuação nas redes sociais é fundamental, porque é por ela que funciona a troca entre a favela e o asfalto, é por ela que a equipe do Maré 0800 recebe as mensagens de pessoas querendo doar roupas, sapatos, livros ou brinquedos e, por ali, conversam, marcam a retirada e agradecem pelas doações. A cada ação é feita uma live do dia de atividade como forma de agradecimento. Inclusive, alguns doadores passaram a ir às atividades.

 

Em outros momentos eu cuidava da página no Facebook, visualizava as

mensagens e respondia. É um coletivo onde todo mundo faz tudo. A minha casa é esse espaço para guardar as doações e aqui eu faço essa separação para que no dia da loja grátis as coisas fiquem organizadas para os moradores. (FERREIRA, 2022)7

 

Para Rosa, isto pode não parecer um meio de comunicação comunitária, mas é sim, pois o objetivo do Maré 0800 não é só doar as roupas, mas também informar:

 

Durante esses dois anos de pandemia, articulamos tudo pelo grupo no zap. Recebemos muitas demandas e pedidos de ajuda pela página do Facebook do Maré 0800, as pessoas da favela usam bastante o Facebook. Eu ficava nessa função de ler e encaminhar as demandas. Muitos dos pedidos de ajuda a gente divulgava na página sem expor as pessoas, depois de conseguir a doação, a gente marcava para a pessoa buscar, ou enviava a doação por mototáxi nos tempos mais difíceis da pandemia. Também usamos nossas redes para falar de como elas podiam se cuidar, onde conseguiriam comida, ficamos em contato com as pessoas que mais precisavam, a gente informou muito, eu lembro de informações sobre higiene, etc. (FERREIRA, 2022)8.

 

2.6. Garotas da Maré (Redes sociais)

Garotas na Maré é formado por uma dupla de irmãs moradoras da Maré. Elas atuam desde um pouco antes da pandemia. Mas foi na pandemia que se destacaram nas redes sociais (Instagram/Twitter) falando principalmente sobre redes de solidariedade e cuidados com a saúde mental. Elas produziram várias lives durante 2020 e 2021. Para este artigo, a entrevista foi feita com Simone Lauar, que é fundadora, repórter, editora e fotógrafa. De acordo com ela, “o jornal é todo online. Hoje em dia, é o meio mais rápido das pessoas obterem informações, é quase que na hora".

Simone informou ainda que sempre está correndo atrás de patrocinadores e editais para tirar as ações do papel.

 

Nosso lema é: Falamos da favela pro mundo e do mundo pra favela. Queremos que a favela ganhe o mundo através de nossas notícias e matérias sobre: educação, cultura e história. Mesmo com tamanhas dificuldades para manter, nosso conteúdo é bem apreciado. Pois sempre falamos dos coletivos daqui da favela, sempre divulgamos as ações. O mundo precisa saber que na favela não existem só operações policiais. E quando divulgamos os coletivos, outros nos procuram para que possamos divulgá-los também. E essa troca só cresce. (LAUAR, 2022)9.

 

3. Comunicação comunitária e sua força gerativa

Diante da crise de credibilidade do noticiário produzido pela mídia, constata-se em diversas regiões do planeta um fluxo em outra direção a qual tem se nomeado por produção regional, local ou como nomeiam os portugueses por “jornalismo de proximidade”, que pode constituir não apenas de forma restrita a um mesmo espaço geográfico da produção e do consumo, mas sim envolver “proximidade cultural” (GARCIA apud RAMOS & GRUPILLO: 2020, p.31).

A proposta do jornalismo de proximidade se insere no contexto de um projeto comunitarista, considerando que uma comunicação comunitária em sua essência pretende estimular e produzir uma vinculação não apenas entre as pessoas que vivem em um mesmo lugar. Mas que se interponha como uma comunicação capaz de gerar uma coesão social onde necessariamente os indivíduos estão preocupados e atentos uns aos outros, ao território em que vivem, à cultura que partilham. É uma coesão capaz de produzir o real interesse em preservar ecologicamente um lugar, seus animais, vegetais e minerais e, também, estabelecer um ambiente de mudança social em direção a propostas amplamente inclusivas.

Nesse sentido, faz-se importante recuar em direção a uma refundação do entendimento em torno dos estudos sobre comunidade. Essa teoria da integração social, pressupõe que a coesão cultural foi construída em torno do conceito europeu, onde desponta teoricamente a partir da distinção basilar de Ferdinand Tonnies (1995) entre comunidade e sociedade. Após a Guerra Fria, conceitos estabelecidos como a comunidade perdem significado em detrimento de ideias menos ideologizadas. O quadro teórico geral deste discurso sobre a unidade europeia é o debate caracterizado entre libertários e comunitaristas. O debate entre liberais e comunitaristas se tornou uma das questões mais importantes da filosofia política na década de 80.

Metodologicamente, comunitaristas rebatem premissas do individualismo, como a ideia de escolha livre que negligencia os contextos social, cultural e histórico. Dentre os comunitaristas da atualidade Alasdair MacIntyre (1993), questiona os pressupostos filosóficos fundamentais do liberalismo, como a prioridade do direito sobre o bem viver. Outro autor da nova vertente comunitarista, Michael Walzer (1999) propõe saídas para a nova cidadania de um mundo em mobilidade e finalmente Charles Taylor (1995), outro nome de liderança nesta abordagem tida como comunitaristas-liberais, tendência alimentada pela teoria jurídica, onde se pretende manter ideais comunitários e de participação democrática juntos, na medida em que a Lei é vista como sustentáculo da comunidade na promoção do bem comum, onde se garantem os direitos liberais sempre através da negociação.

No final dos anos 90, tentando encontrar um caminho entre as duas proposições, Marcello Veneziani (1999) traz a antiga polêmica e novos ares sob um sugestivo título: Comunitário liberal - la prossima alternativa?, confirma não se admitir mais uma escolha comunitária que não reconheça em torno de si as regras liberais e propõe uma comunidade participativa, onde a tecnologia esteja funcionando como instrumento de comunicação e participação, e argumenta como advertência que uma comunidade pode transformar-se em aberta ou em uma tribo fechada. O respeito é o que marca a diferença da escolha.

É preciso reforçar que é exatamente a comunidade vista a partir da possibilidade da fusão com as ideias liberais, que consolida o conceito de cidadania, que se tornou um conceito político chave após a Revolução Francesa. Esta ligação entre comunidade e cidadania é um elemento dominante da teoria política e jurídica atual. É preciso destacar que cidadania significa participação em uma comunidade política. A cidadania confere o estatuto de igualdade entre todos os cidadãos no que diz respeito aos direitos e deveres. Cidadania também significa uma forma de comportamento ativo em relação à comunidade.

Por outro lado, apesar de comunidade ser um dos termos mais onipresente e imprecisos nas ciências sociais, é geralmente associada a uma variedade de conotações positivas, que englobam familiaridade e solidariedade, é preciso reconhecer que a sua proposição confere lastro quando se pretende discorrer sobre grupos marcados pela importância de uma base territorial ou daqueles que compartilham projetos coletivos até um sentimento de pertencimento. A comunicação comunitária traz a marca do entendimento da comunicação em sua essência transformadora, que para se tornar operativa enseja o entendimento de procedimentos básicos que vão desde a produção das narrativas, bem como o acesso aos meios de produção das mensagens. É a esse conjunto operativo metodologicamente determinado que se nomeou por comunidade gerativa (PAIVA, 2004).

A proposição designada por “comunidade gerativa” parte do entendimento comum em primeiro lugar de que a cidadania é uma conquista fundamental para a concretização da vida humana. Entretanto, sabemos que desta construção o escopo populacional de maior número fica de fora, excluído, porque sempre esteve excluído, morando em lugares onde a cidadania faz sombra e onde se pode conviver mais de perto com conceitos como a subalternidade. A realidade da informalidade, vigente na maior parte dos espaços de países do hemisfério sul, como o Brasil, exige criatividade e inventividade de maneira a superar minimamente as implacáveis condições de existência. É exatamente nesta disposição de luta que mescla inventividade e a marca da exclusão que se constitui o que se nomeia por “comunidade gerativa”, ou seja, a apropriação das forças de solidariedade presentes no projeto do comum, da vida comunitária sendo capaz de produzir uma força potencializadora, geradora e gerativa de formatos de luta capazes de produzir mudanças sociais. A presença e atuação dos coletivos constituem a concretização atual do espírito da “comunidade gerativa”.

Com os exemplos trazidos nesse texto a partir dos veículos de comunicação atuantes no território da Favela da Maré pretende-se em primeiro plano demonstrar a intrínseca interação existente entre os polos-produção-recepção de notícias, de tal modo que já não é mais possível separá-los como unidades monolíticas. E principalmente que toda a produção consumo está direcionada não apenas a um propósito de denúncia e partilha das dores que assolam a todos, mas e principalmente a necessidade e urgência da busca de soluções e saídas diante do reconhecimento indelével da inexistência de um estado de direito que legisle pelo bem comum. Para concluir, é importante explicar que o trabalho apresentado foi realizado no período de maio e junho de 2022, fazendo uso de metodologias de pesquisa participativa, investigação teórica e entrevista com os comunicadores responsáveis pelos veículos.

 

Referências:

 

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3.ed. São Paulo: Nacional, 1959.

MACINTYRE, A. Dopo la virtù – saggio di teoria morale. Milano, Feltrinelli, 1993.

PAIVA, RAMOS, G. & GRUPILLO, A. Jornalismo Regional em Novas Plataformas. PAIVA, R. (org) O retorno da comunidade. Rio de Janeiro. Ed. Mauad 2008.

PAIVA, R. Estratégias de Comunicação e Comunidade Gerativa. In PERUZZO, Cicilia (org). Vozes cidadãs: aspectos teóricos e análises de experiências de comunicação popular e sindical da América Latina. São Paulo: Angellara Editora, 2004.

SILVA, C.R. Maré: a invenção de um bairro. Trabalho de conclusão de curso sobre a história da Maré, Fundação Getúlio Vargas, 2006.

TAYLOR, C. Le malaise de la modernité. Paris, Du Cerf-Humanités, 1995.

TÖNNIES, F. [1887]. Comunidade e sociedade. In: MIRANDA, Orlando de (org.). Para ler Ferdinand Töennies. São Paulo: Edusp, 1995.

VENEZIANI, M. Comunitari o liberal: la prossima alternativa? Roma, Editori Laterza, 1999.

WALZER, M. Da Tolerância. Rio de Janeiro, Martins Fontes, 1999.

 

 

Data de Recebimento: 28/09/2022
Data de Aprovação: 01/02/2022


1  Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/digital-news-report/2022. Acesso em 20 de mar. de 2022.

2  A história da Maré é muito rica em detalhes, fatos históricos, lutas e resistências, alegrias e tristezas, enfim é cheia de vida, de vida de homens e mulheres que um dia acreditaram que poderiam até mesmo construir o seu próprio chão, segundo expressão utilizada por Vieira (2008, p. 99)

3  Entrevista concedida à autora por entrevista presencial em 10 de maio de 2022.

4  Entrevista concedida à autora por entrevista presencial em 10 de maio de 2022.

5  Entrevista concedida à autora por meio presencial em 15 de maio de 2022.

6  Entrevista concedida à autora por meio online em 15 de maio de 2022.

 

7   Entrevista concedida à autora por meio online em 15 de maio de 2022.

8   Entrevista concedida à autora por meio online em 15 de maio de 2022.

9   Entrevista concedida à autora por meio online em 15 de maio de 2022.