Quando a polissemia insiste em se inscrever: uma análise sobre corpo-e-sujeito transexual


resumo resumo

Lidia Noronha Pereira



Introdução

O presente estudo, desenvolvido à luz do campo teórico da Análise de Discurso, toma como tema a significação do corpo e do sujeito, inscritos pelo sexo e pelo gênero em/por uma sociedade capitalista do século XXI, como a brasileira. Mais especificamente, toma-se como objeto de estudo o corpo e o sujeito transgêneros que, compreendidos enquanto efeitos de linguagem, significam sentidos outros para corpo e para sujeito quando diante de si e quando diante do olhar social.

É importante mencionar que, ao longo deste exposto, as palavras “corpo” e “sujeito” serão tradas de forma aglutinada, corpo-e-sujeito, na tentativa de estabelecer um lugar, uma noção para que se possa pensar na discursividade de corpo e de sujeito na medida em que ambos se inscrevem enquanto linguagem, enquanto materialidades significantes do/no discurso1.

Para melhor elucidar tal questão, faz-se necessário retomar os estudos de Orlandi (2012) que buscam trabalhar os processos de significação em funcionamento através do corpo e do sujeito. Ao considerar a relação entre ambos, a autora (idem, p. 83), coloca que “a significação do corpo não pode ser pensada sem a materialidade do sujeito. E vice-versa (...)”. Ao partir desse pressuposto, Orlandi (2012, p. 83) busca questionar, em seu estudo, “como juntar corpo, sujeito, sentido, pensando a questão da materialidade discursiva?”.

A autora retoma primeiramente algumas formulações de Pêcheux (1975), entre elas o conceito de materialidade discursiva, para essa compreensão a respeito do corpo e do sujeito concebidos enquanto materialidades significantes. Assim, a autora (idem, p. 84) traz as noções pêcheuxtianas de que “a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua” e, ainda, que “inconsciente e ideologia estão materialmente ligados”. Pontua, nesse sentido, que há dois pares que se conjugam pela materialidade: língua e ideologia / ideologia e inconsciente.

Partindo de tal pressuposto, a autora (idem) coloca que, ao ser interpelado pela ideologia (PÊCHEUX, 1975), o sujeito se produz e se constitui enquanto forma material, enquanto materialidade discursiva. Tal materialidade do sujeito pode ser observada em funcionamento pela sua não transparência à medida que a ideologia e o inconsciente fazem intervir em sua constituição. Assim, pensando a relação entre corpo e sujeito, tomando o corpo também enquanto um exemplo de materialidade discursiva, Orlandi (2012, p. 85) mostra que “O corpo simbólico, corpo de um sujeito, é produzido em um processo de significação onde trabalha a ideologia, cuja materialidade é o discurso.”

Desse modo, Orlandi (idem) institui um modo de se compreender o corpo no contexto dos estudos da linguagem, para o qual este é desnaturalizado e remetido ao campo do simbólico enquanto um processo de significação ideológico, materializado pelo discurso, no caso, pelas vias do corpo. Conforme a autora (2012, p. 86-87), “A interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia produz uma forma sujeito histórica com seu corpo. Há, eu diria, uma forma histórica (e social) do corpo, se pensarmos o corpo do sujeito.”

De acordo com Pêcheux (1969) apud Orlandi (1998), ao pressupor a ordem própria da língua, a Análise de Discurso trabalha com a noção de discurso enquanto “efeito de sentidos entre locutores”, incluindo sujeito e situação de maneira que o real da língua e o real da história não fiquem de fora. Dentro dessa perspectiva, a linguagem não é considerada em sua transparência, uma vez que deve ser levado em conta o sujeito em seu processo de constituição e o sentido em sua forma material. Segundo a autora (idem, p. 59), “Sentido e sujeito se constituem ao mesmo tempo: ao significar, o sujeito se significa”.

Assim, para tal campo teórico, sentido e sujeito estão sujeitos não apenas à situação imediata, mas, e principalmente, à exterioridade do discurso, ao interdiscurso, à memória do dizer que, inclusive, organizará situações e contextos em que a prática discursiva se realiza. E, dentro de tal processo, pode-se compreender que o corpo, enquanto linguagem, não fica de fora da relação de constituição entre sentido e sujeito.

Dessa maneira, intenta-se, aqui, apresentar uma discussão sobre a significação do corpo-e-sujeito outro, como o transgênero, que desestabiliza os sentidos já dados para corpo-e-sujeito significados a partir de uma determinada normatividade de sexo e de gênero. Para isso, como recorte de análise, são apresentadas quatro imagens da cantora, compositora e atriz Liniker que foram retiradas ao longo da entrevista concedida à TV Trip, em 2016. Diante desse material, também foram selecionados dois trechos da referida entrevista. Ainda, compõe o corpus de análise o discurso proferido por Liniker, seis anos mais tarde, ao receber premiação no Grammy Latino, em 2022.

Diante disso, faz-se importante colocar que é de interesse compreender a constituição e significação do corpo-e-sujeito a partir da polissemia, da multiplicidade de sentidos, almejando mostrar que a ideia de que corpo-e-sujeito não estão destinados a convenções socioculturais que, não raro, provocam o fechamento e a univocidade de sentidos para sua significação.

 

1. A política de poder e a correspondência não natural entre sexo biológico e gênero

Antes de adentrar na questão que motivou esta pesquisa, é necessário, porém, apresentar uma abordagem antropológica sobre a oposição histórica entre masculino e feminino. Para tanto, faz-se importante o estudo do sociólogo Pierre Bourdieu (2002) que, a partir da análise de uma determinada sociedade, pensa na relação de dominação que se institui nos papéis homem / mulher e que integra o sexo, a sexualidade e o gênero. Tais apontamentos serão fundamentais para que seja possível compreender, pela Análise de Discurso, como se dá o processo de significação de corpo-e-sujeito a partir de sua inscrição, pelo social, a determinado gênero.

Bourdieu (2002) busca compreender as transformações que ocorrem (ou não) nas sociedades no que diz respeito às relações entre os sexos; mais especificamente, a relação de dominação do masculino sobre o feminino. O autor (idem) questiona quais seriam os mecanismos históricos responsáveis capazes de gerar a des-historicização2, por um lado, e, por outro, a eternização das estruturas que giram em torno da divisão sexual e de seus princípios.

Diante disso, é possível trazer à tona alguns elementos de diversas culturas que marcam essa dominação: quando a mulher herda o nome do marido ao se casar; quando, em algumas profissões/cargos, mulheres recebem menores salários ao ocupar a mesma posição profissional de um homem etc. Diversas práticas e eventos em lugares e culturas variadas apontam para a constatação de uma situação de desigualdade entre homem e mulher, para um mundo moldado para o prazer do homem, em que a mulher é situada como objeto.

Dessa forma, Bourdieu (2002) inicia trazendo aquilo que chama de paradoxo da dóxa: o fato de que na organização do mundo - com seus sentidos possíveis e proibidos, suas obrigações e sanções, suas transgressões, subversões, delitos e loucuras ou, ainda, com suas relações de dominação, direitos, imunidades, privilégios e injustiças - as imposições, como a dominação masculina, podem permanentemente ser vistas como aceitáveis e até mesmo naturais à ordem estabelecida.

Bourdieu (idem) tem uma visão antropológica da sociedade, compreendendo-a como resultante de espaços que são divididos e que se constituem de/por tensões. Nesse sentido, a divisão entre homem e mulher divide o espaço social por uma relação em que se exerce um poder e por conseguinte uma dominação. O que é interessante aqui é que sua reflexão marca este espaço como um espaço social e não apenas doméstico ou familiar.

Nesse passo, Bourdieu (2002, p. 04) analisa se a estrutura de uma sociedade “androcêntrica particularmente bem conservada”, a cabila, observada por ele durante a década de sessenta, pode oferecer subsídios que possibilitam compreender determinados aspectos concernentes à divisão sexual que são/estão dissimulados pelas sociedades contemporâneas.

Desse modo, Bourdieu (idem) coloca que buscar elementos em uma tradição exótica, como a cabila, é fundamental para que seja quebrada a relação equivocada de familiaridade que liga as sociedades modernas a uma tradição. Segundo o autor (idem), essa quebra pode ser observada com a divisão social dos sujeitos em feminino e masculino a partir de suas aparências biológicas, produzindo um efeito de que essa divisão é natural, própria do ser humano3.

A partir de uma outra perspectiva teórica, o historiador e sexólogo Thomas Laqueur (2001), ao realizar um estudo sobre corpo e gênero desde a antiguidade grega até o século XX, propõe mostrar que o sexo, até o século XVII e meados do século XVIII, era compreendido como um epifenômeno. Ou seja, o sexo biológico era visto como um produto advindo e condicionado por um processo fisiológico e, por isso, incapaz de determinar o comportamento dos sujeitos. Já o gênero (homem/mulher), diferentemente do sexo, considerado dentro de uma categoria cultural, era primário ou “real”. De acordo com Laqueur (2001, p. 19),“Ser homem ou mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural, não ser organicamente um ou outro de dois sexos incomensuráveis. [...] o sexo antes do século XVII era ainda uma categoria sociológica e não ontológica.”

Segundo Laqueur (idem), os avanços dos estudos referentes à anatomia e o surgimento da teoria do germe, no século XIX, referiam-se a uma origem comum entre ambos os sexos, uma vez que estes eram formados por um embrião cuja morfologia andrógina não representava diferenciações que implicavam uma diferença, uma separação entre dois seres opostos. Assim, em meados de 1850, houve uma rearticulação dos estudos de Galeno4, e os órgãos sexuais masculinos e femininos foram concebidos como homólogos - pênis/clitóris, lábios/escroto, ovários/testículos – uma vez que tinham origens comuns durante o desenvolvimento do feto.

Com isso, de acordo com o autor (idem), havia argumentos científicos suficientes que apoiavam a visão antiga e que apontavam para a existência de um sexo único. No entanto, houve um grande interesse na busca por evidências que separavam os corpos em dois sexos distintos marcando as diferenças anatômicas e fisiológicas, que, segundo Laqueur (2001, p. 21-22), só começaram “quando essas diferenças se tornaram politicamente importantes.”. E, mais tarde, quando tais diferenças foram apontadas, elas já estavam inscritas e “profundamente marcadas pela política de poder do gênero”. Dessa forma, conforme o autor, pode-se dizer que a divisão do sexo que hoje é conhecida foi construída em algum momento entre os séculos XVIII e XIX.

Laqueur (2001) ainda aponta que a ciência com suas “descobertas” não produziu sozinha a divisão de dois sexos distintos. Tal oposição entre um sexo e outro se deu a partir de questões políticas. Segundo o autor (idem), a política, compreendida, de modo geral, enquanto competição pelo poder, lançou novas maneiras de constituir não apenas o sujeito, mas também as realidades sociais dentro das quais o sujeito vivia. Assim, conforme Laqueur (2001, p. 22) “falar em tom sério sobre sexualidade era, inevitavelmente, falar sobre a ordem social que ela representava e legitimava.”.

Dessa maneira, pensar a desnaturalização dos corpos à divisão social dos sexos, como aponta Bourdieu (2002), não deixa de ter consequências em sua prática, uma vez que esta divisão implicará na concepção de novas estratégias que visam organizar a relação de forças que constituem a sociedade.

Retomando Bourdieu (idem), na dominação masculina há um princípio de perpetuação da relação de dominação que não só advém dos lugares mais visíveis, como o doméstico, mas também, e principalmente, das instâncias como a Escola e/ou o Estado, lugares em que são elaborados e impostos os princípios de dominação. Diante disso, Bourdieu (idem) coloca que as lutas feministas são chamadas ao seio das questões políticas para contrariar e des-historicizar as formas de dominação masculina, quebrando o que Bourdieu chamou de eternalização das estruturas da divisão sexual. Importante observar que essa divisão sexual é marcada pelo político, pela divisão de sentidos que constituem não apenas a organização social, mas também corpo-e-sujeito.

A esse respeito, podemos citar a retomada que a psicanalista Poli (2007, p. 25) faz do dizer de Beauvoir (2002 [1949]) quando esta diz que “o destino não é a anatomia, pois o sexo das mulheres é uma questão política”. E, partindo deste ponto, Poli (2007, p. 60) afirma que “toda política é corporal e todo corpo é político.”. Essas formulações apontam não apenas para a determinação histórica dos processos de significação da correspondência entre sexo biológico e gênero, mas, também, apontam para uma divisão social que demarca as posições em que cada um dos dois gêneros deve ocupar, de forma que estas posições confiram prestígio social ao homem e uma posição social desprestigiada à mulher.

Sobre tal ponto, no que se refere à ciência, também considerada um dos principais espaços de elaboração da dominação masculina, Laqueur (2001) expõe que, tanto nos textos quanto nas imagens de manuscritos e de livros que buscavam compreender o sexo humano, havia uma insistência obsessiva, como coloca, em apresentar o corpo masculino como padrão, de maneira que o corpo feminino ficasse completamente fora dos estudos, como se não existisse. Durante quase dois mil anos, segundo Laqueur (2001), partiu-se do princípio de que é masculino o corpo humano. Já o corpo feminino, este só era apresentado para mostrar como se diferencia do masculino e, não raro, era tido como “errado”, “imperfeito” etc.

Sendo possível uma aproximação das ideias de Laqueur (2001), Bourdieu (2002, p. 17) elucida que a dominação masculina se deixa ver no fato de que essa ordem dispensa sua justificação: “a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”, pois já se encontra firmada pelo simbólico coletivo.

Assim, ao voltar os olhos para a sociedade cabila, Bourdieu (idem) afirma que o mundo social concebe o corpo como uma realidade sexuada e como um recipiente em que os princípios da divisão sexualizante são depositados. Dessa forma, tal programa social, conforme o autor (idem), é responsável por construir a diferença entre os sexos a partir do biológico, fazendo com que haja uma conformidade aos princípios de uma relação arbitrária da dominação masculina frente à feminina, inscrita pela divisão do trabalho e pela realidade da ordem social.

Dessa maneira, de acordo com o antropólogo, a definição dada pelo social aos órgãos sexuais está longe de ser um registro despretensioso das propriedades naturais. Ao contrário, tal definição é produto de uma construção feita através de determinadas escolhas que se pautam no destaque das diferenças biológicas ou mesmo do apagamento das semelhanças.

De acordo com o historiador Thomas Laqueur (2001), a radical naturalização da mulher que a reduzia ao órgão sexual impunha, assim, uma diferença marcante entre os sexos, determinando seu comportamento enquanto uma espécie outra, que não a masculina. Entretanto, tal correspondência vagina/mulher não originou por si só uma posição quanto a um lugar social e/ou cultural específico da mulher. Segundo o autor (2001, p. 263), o que era levado em consideração era a forma como se dava a argumentação da mudança do sexo para o gênero, do corpo (como a menstruação) para o comportamento (como a moralidade). Dessa forma, Laqueur (2001, p. 263) afirma que as supostas diferenças sexuais oscilavam conforme as exigências do período: “[...] a equiparação do cio à menstruação podia ser a base da argumentação contra a participação da mulher em atividades públicas que exigia uma concentração estável e diária.”.

Dessa maneira, questiono o lugar de dominado que corpo-e-sujeito outro, como o transexual, ocupa. Estariam tais corpos e sujeitos, ao se significarem para além do masculino, no mesmo patamar inferior de dominação em que se configura o lugar do feminino? Respondendo a essa questão, parte-se do pressuposto de que não estão no mesmo patamar, uma vez que os fatos noticiados e observados pelo cotidiano do cenário brasileiro apresentam corpo-e-sujeito trans em uma posição ainda inferior que a feminina, sofrendo maior exclusão social, como será mais pontualmente abordado na seção seguinte.

Dando continuidade à leitura de Bourdieu (2002), para que se possa compreender de que forma ocorre o processo de dominação masculina, o autor (idem) aponta para o fato de que a oposição entre os sexos se dá em uma série de oposições de ordem mítica e ritualista que são tornadas visíveis através da análise da sociedade cabila. Ali, tais oposições são vistas ao se estabelecer a divisão entre os gêneros homem e mulher de maneira que o primeiro ocupe o lugar de dominação. Enquanto ao homem competem práticas ativas, móveis, às mulheres competem o seu contrário, práticas passivas e imóveis – o que, inclusive, é percebido, conforme Bourdieu (idem), durante as práticas sexuais.

Dessa forma, o autor (2002) compreende a relação sexual como reflexo da dominação social masculina que, além de organizar os papéis sexuais (ativo/passivo; em cima/embaixo)5, cria e dirige as formas de desejo. A esses papéis sociais distintos, e presentes pela relação de oposição e dominação, irão corresponder, segundo Bourdieu (2002), ao desejo masculino que é referente ao desejo de posse, enquanto ao feminino é referente ao desejo de subordinação – este último também observado pela violência simbólica que o autor (2002) traz e que será abordada mais adiante.

Sobre as formas dirigidas do desejo, Laqueur (2001) explica que o surgimento da anatomia sexual dividida entre feminino e masculino foi realizado para sustentar ou negar as diversas reivindicações nos mais variados contextos, quer sejam sociais e culturais, quer sejam no campo da economia, da política, da erotização etc. Assim, Laqueur (2001) aponta que quando a ordem e/ou costumes se tornavam insuficientes para justificar as relações sociais, as questões que, a princípio, giravam em torno do gênero, passaram do sociológico para o ontológico, para a natureza, para a ordem do sexo biológico.

Para elucidar a discussão aqui posta, pode ser citado o fato ocorrido no dia internacional da mulher 08/03/2023 em que o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), após colocar uma peruca e tomar a palavra na tribuna da Câmara, iniciou um discurso transfóbico, ironizando as mulheres transexuais. Seu principal argumento, para negar a transexualidade, foi o de que “as mulheres estão perdendo o seu espaço para homens que se sentem mulheres” (FUZEIRA, 2023). De forma cínica, o referido deputado culpabiliza as mulheres trans pela falta de oportunidades que as mulheres cisgêneras estão sujeitas, como se, ao longo da história, não tivesse sido pessoas como o próprio a relegar as mulheres a espaços silenciados em nome do poder.

É certo que, diferentemente da sociedade cabila, a sociedade brasileira é composta por corpos e sujeitos submetidos a outros processos de significação que conferem à mulher, por exemplo, uma participação mais ativa socialmente, o que não significa que o sujeito mulher esteja livre da exclusão em determinadas práticas sociais – em especial as que têm mais prestígio social. Diante disso, pode-se perceber não somente a divisão social entre os sexos, mas também o funcionamento da dominação masculina através de diversas práticas sociais. Não é preciso citar muitos exemplos quanto a isso, mas vale lembrar o surgimento de leis específicas que visam proteger e amparar mulheres, como a Lei Maria da Penha - Lei nº 11.340/2006 e o Projeto de Lei 111/23 que torna obrigatória a equiparação salarial entre homens e mulheres para funções ou cargos idênticos. Ora, se a dominação masculina não estivesse exercendo seu poder, a própria Constituição Federal seria suficiente para proteger e amparar todos os seus cidadãos, independentemente do gênero.

De acordo com Bourdieu (2002), os funcionamentos da divisão entre os sexos e da imposição da dominação masculina implicam a um determinado tipo de violência ao nível do simbólico. Segundo o sociólogo, a violência simbólica é internalizada pelos sujeitos que, inconscientemente, naturalizam e legitimam as práticas que os inscrevem, seja enquanto sujeito dominador, seja enquanto sujeito dominado.

Dessa forma, pode ser compreendido, conforme o autor (2002), que a violência simbólica é instituída por uma adesão dos sujeitos na medida em que estes se inscrevem em uma relação de dominação (dominador/dominado) vista como natural e/ou – até mesmo – sagrada e, nesse sentido, algo que não deve ser violado6.

Com isso, a compreensão da lógica da dominação masculina e, consequentemente, da submissão feminina, de acordo com Bourdieu (2002), só poderá se dar se houver atenção à duração dos efeitos que tal ordem social exerce sobre corpos e sujeitos; bem como atentos às organizações aparentemente harmonizadas e naturalizadas que lhes são impostas.

Sobre esse ponto, no que diz respeito à Análise de Discurso, é importante ter em mente que não é a dominação masculina que determina os sentidos, pois ela própria já é um desses sentidos determinados pelas condições de produção do discurso que tanto produzem a dominação masculina quanto possibilitam a ruptura dessa dominação. Do contrário, não haveria a possibilidade de existência de sujeitos outros, como travestis, transexuais, etc.

 Com tais leituras, é possível observar as configurações sociais de dominação que buscam determinar os sujeitos dentro das esferas dominador/dominado a partir do sexo biológico. Retomando a proposta deste estudo a partir do campo teórico da Análise de Discurso, pode-se dizer que a significação do corpo-e-sujeito vai se constituindo na medida em que estes vão se inscrevendo nas/pelas práticas sociais. Assim, o corpo, ao ser determinado socialmente pelos órgãos sexuais, automaticamente, ou melhor, arbitrariamente, significa o sujeito inscrito pelo sexo masculino, que domina, ou pelo sexo feminino, que é dominado. Interessa, então, pensar essa relação de dominação pelo fato de que corpo-e-sujeito outros, como o transexual, ao se inscrevem e serem inscritos por ela resistem e a subvertem.

 

2. A inscrição social do corpo-e-sujeito outro pela narratividade urbana

A presente seção pretende dar continuidade à discussão proposta, apresentando uma reflexão acerca da (des)naturalização dos sentidos postos para corpo-e-sujeito divididos pelo feminino-mulher/masculino-homem. Sobre isso, interessa aqui compreender os movimentos da significação do corpo-e-sujeito que vão de encontro a uma naturalização da divisão social entre os sexos e que, por isso, trabalham com a desnaturalização dos sentidos. Em outras palavras, busca-se a compreensão de corpo-e-sujeito não sob a ótica da paráfrase normativa do gênero, mas pela polissemia, pela multiplicidade de sentidos, pelo deslocamento do normativo que estabelece a correspondência, dita como natural, entre sexo biológico e gênero.

Dessa maneira, para que se possa compreender os processos de significação para corpo-e-sujeito, são levados em conta a sua inscrição na lógica da dominação masculina (BOURDIEU, 2002), como abordado na seção anterior, e os efeitos de sentidos naturalizados que essa ordem social pode exercer. Atendendo a um olhar teórico discursivo, concebe-se, aqui, tal naturalização de dominação masculina enquanto uma repetição do mesmo, enquanto uma paráfrase que vem se mantendo ao longo dos séculos e reproduzindo, mesmo que com outras ‘palavras’, os sentidos fixos para corpo-e-sujeito através do sexo e do gênero. No entanto, essa ordem de dominação que se estabelece no simbólico é também atravessada por sentidos outros capazes de ressignificar corpo-e-sujeito, desnaturalizando sentidos cristalizados. Ou seja, mesmo havendo a paráfrase, há, também, a polissemia, o novo, o diferente constituindo corpo-e-sujeito que é sempre sujeito à tensão entre ambas (ORLANDI, 2010). De acordo com a Análise de Discurso, há sentidos que escapam ao já-dito e que também constituem a forma-sujeito histórica produzindo efeitos de sentido, no caso em análise, para além do instituído enquanto norma, enquanto ordem, enquanto paráfrase7.

Para demonstrar um exemplo de ruptura, de polissemia, de desnaturalização da ordem social da dominação masculina que encerra corpo-e-sujeito arbitrariamente ao biológico, seguem os recortes mencionados para análise. Estes tratam, primeiramente, de quatro imagens da cantora, compositora e atriz Liniker durante uma entrevista concedida ao canal online TripTv e de dois fragmentos do depoimento sobre a sua significação, dado, nessa mesma oportunidade, ao canal online TripTv em 2016. Em um segundo momento, o recorte de análise é constituído por um discurso proferido por Liniker (2022), seis anos mais tarde, em razão de sua premiação no Grammy Latino, em 2022. Tais recortes, tomados como exemplos de materialidades discursivas do corpo-e-sujeito, servirão como dados para a análise dos processos outros que atravessam e constituem corpos e sujeitos contemporâneos. Assim, seguem as imagens de Liniker (2016) durante a entrevista concedida ao canal online TripTV no YouTube:

 

                                                                                                                                                                                                          Imagem 1       Imagem 2

 

 


Imagem 3             Imagem 4

 

Ao observarmos as imagens acima, nos deparamos com a significação de um corpo-e-sujeito outro - aquele que não se inscreve pela paráfrase instituída para sexo e gênero. Vemos, através da materialidade significativa do corpo de Liniker elementos que escapam à significação normativa para corpos e sujeitos. Temos, nesse momento, um corpo inscrito e significado pela própria tensão do feminino/masculino, e que resiste em fechar sua significação em um ou outro polo. Diante de tal corpo, não raro, o olhar da norma questionaria: “é um homem?” “é uma mulher?” ou “como pode um homem fazer uso de elementos estabelecidos para o universo feminino, como brincos e saia?” ou, ainda, “Se é mulher, como pode ter bigode e cavanhaque?”.

Ao se deparar com esse corpo outro, alguns olhares poderiam, ainda, tentar justificar a figura de Liniker a sua carreira de artista, como se a cantora e atriz vestisse uma personagem que inspirasse a sua presença de palco, abandonando-a depois do show. Como se tal aparição só fosse possível no mundo artístico, no espetáculo. Mas, longe de meramente representar um corpo artístico, corpo-e-sujeito Liniker são constituídos em sua significação pelo paradoxo da união/cisão entre os sexos, podendo expressar, por um lado, o feminino e o masculino ao mesmo tempo, no mesmo corpo, mas, por outro, a negação de ambos, uma vez que não se significa, nesse momento, nem como homem, nem como mulher.

Nessa perspectiva, os dois trechos selecionados do depoimento de Liniker (2016) em que fala de sua significação outra, para além da dicotomia do feminino/masculino, parece ir nessa direção paradoxal. No primeiro trecho, percebe-se que a sua constituição enquanto corpo-e-sujeito outro se deu antes de sua aparição como cantora na mídia:

 

Trecho 01: Não faz tanto tempo que eu comecei a assumi essa identidade, faz uns dois anos, mais ou menos. Eu achei que eu precisava ser o que eu sou no meu dia a dia, ali no vídeo. E... Mostrar essa simplicidade que eu tenho, o jeito que eu sou realmente, pra ser orgânico. Então, eu falei: “eu preciso estar vestido assim, como eu me sinto à vontade.” Tanto é que eu me visto assim no meu dia a dia. E aí, eu falei: “vou estar assim no vídeo. (Depoimento de Liniker ao canal Trip TV em 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ozvE0STlNzg)

 

Na fala de Liniker, pode-se observar que, a princípio, houve um momento de hesitação no que se refere a gravar um vídeo de seu trabalho revelando-se enquanto corpo-e-sujeito fora do normativo estabelecido. Em uma interpretação possível, pode-se dizer que essa hesitação em se deixar ver pela sociedade pôde significar o receio de uma não aceitação sobre si e sobre seu corpo.

 Ao refletir sobre a sua significação aos olhos do público e a despeito de uma possível insegurança, Liniker decide gravar o vídeo de seu trabalho expondo-se de maneira que corpo-e-sujeito Liniker não seja apagado em prol do dizer estabelecido pela norma. Dessa forma, ao significar-se de forma outra diante do público, Liniker atravessa o imaginário deste grupo, apresentando novas formulações possíveis para corpo e para sujeito, ressignificando-os aos olhos do outro.

Indo além, Liniker deixa em aberto os sentidos sobre a sua significação outra:

 

Trecho 02: E aí as pessoas me perguntam da questão de gênero “você é homem” ou “você se identifica como homem, como mulher?” Eu não sei. Eu sou bicha, sou preta, mas não sei se sou homem ou se sou mulher. Então, tô em um processo de... estou sendo o que eu sou, sou o que é. Essa semana mesmo, tava indo pra escola, aí passou um cara num carro e falou assim: “EU NÃO ACREDITO!”. Aí parei, assim, e continuei minha caminhada. Mas, fazer o que? Eu sou assim... Não tem como eu fugir de quem eu sou. (Depoimento de Liniker ao canal Trip TV, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ozvE0STlNzg)

 

Nessa fala de Liniker, pode ser observado o olhar interrogador da norma diante de si. Questiona-se o lugar social da divisão entre os gêneros do qual Liniker se posiciona: é homem ou é mulher? Sua resposta parece não responder a essa pergunta que fecha os sentidos e impõe uma posição a ser tomada ao se fazer dizer. Ali, Liniker deixa em aberto a sua significação ora por dizer não saber se é homem ou mulher; por se dizer os dois; pelo uso das reticências; ora por se dizer ser aquilo que é: o outro, o diferente, o que não é o mesmo.

Ao afirmar “estou sendo o que sou, sou o que é” além da inscrição de seu ser em uma ontologia, ou seja, uma investigação do ser, podemos perceber que, pela falta de um predicado, há uma relação de equivalência ente “sou” e “é”. Não há uma determinação que especifica, que aloca o sujeito em uma categoria de gênero - sou X ou sou Y ou, ainda, sou XY. Percebe-se uma certa desconfiança em relação às denominações de gênero, o que poderia levá-lo ao ato de não se nomear, de não se atribuir a um determinado gênero. Com isso, pode-se dizer que há um efeito de suspensão de uma nomeação que defina um lugar possível desse corpo-e-sujeito. Mais do que isso, é na suspensão de um caráter normativo de gênero que a significação do corpo-e-sujeito Liniker se sedimenta, sendo esta suspensão a própria norma.

Em uma interpretação possível, a norma, aqui, é não se submeter ao normativo já instituído para corpo-e-sujeito. É na tentativa reiterada de manter essa suspensão normativa que se configura um lugar possível para corpo-e-sujeito outro. Aqui, pode ser visto o funcionamento do corpo-e-sujeito a partir do não-sentido que, de acordo com Pêcheux (1995), é o lugar onde os sentidos são produzidos, onde se configura o novo. Dessa maneira, pode-se dizer que ao vivenciar a tensão entre o já-dito sobre corpo e sobre sujeito, entre o não-sentido e o sentido que dá origem ao significante que tal corpo-e-sujeito Liniker é produzido e significado.

Podemos observar, em tais recortes de análise advindos da fala de Liniker, que, além da significação de um corpo que materializa a cisão e a união entre o feminino e o masculino, a sua significação enquanto sujeito também é constituída por tal paradoxo. No primeiro trecho, Liniker refere-se a si no masculino ao colocar “pra ser orgânico” e “eu preciso estar vestido”, já no segundo, Liniker coloca-se no feminino: “sou preta”. Ali, em sua fala, os sentidos estabelecidos pela ordem social para corpo-e-sujeito aparecem desautorizados, suspensos e, por que não, sofrendo um processo de desnaturalização. Em tal corpo-e-sujeito, pode ser percebido, conforme já visto em Bourdieu (2002), que a organização social, cultural e política que dita a divisão entre os sexos advém de questões culturais e não naturais, do contrário, não seria possível a existência de corpos e sujeitos significados para além dessa dicotomia do feminino/masculino.

O depoimento de Liniker também demonstra outro olhar da norma, advinda pela presença de uma voz social que perpassa o urbano negando a possibilidade de sua existência. Ao ouvir um alto e sonoro “eu não acredito” no meio da rua, durante uma prática cotidiana, Liniker se depara com uma voz social que representa a negação de uma possibilidade, de uma diferença no já-dito sobre homem/mulher em termos de suas marcas simbólicas. No entanto, resiste. Segue em frente na ânsia de se encontrar, de não fugir de si mesmo e demonstra, de forma um tanto conformada, que o preconceito que poderá vir a sofrer não será suficiente para lhe fazer calar. Diante disso, observa-se que há um confronto: de um lado, a resistência do social funcionando por uma voz que carrega o dizer da negação, do absurdo; de outro, a resistência do sujeito que, mesmo desacreditado, insiste em uma significação outra para si e para o seu corpo. Com isso, pode-se dizer que o corpo-e-sujeito outro é constituído e atravessado não apenas pelos desejos do sujeito, mas também pelo embate de sua significação ao se expor, nos espaços da cidade, sob o olhar da resistência social.

Sobre tal ponto, e dando continuidade à reflexão, o próximo recorte de análise se refere ao dicurso proferido por Liniker (2022) após subir no palco da premiação do Grammy Latino, de 2022, e receber o prêmio pelo álbum “Índigo Borboleta Anil” na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. Liniker fez o discurso em espanhol, no entanto, abaixo, está a sua livre tradução para o português:

 

Olá! Eu sou Liniker. Eu sou uma cantora, compositora e atriz brasileira. E hoje, algo histórico acontece na história do meu país. É a primeira vez que uma artista transgênero ganha um Grammy. Muito obrigada a toda minha equipe que esteve comigo desde o começo, sonhando junto comigo. Muito obrigada a cada um de vocês. Agradeço a minha produção [...] e a todas as compositoras que estiveram comigo neste disco. Estou muito, muito feliz e obrigada, muito obrigada! (Discurso de Liniker ao receber prêmio no Grammy Latino, em 2022. Dispónível em: https://www.youtube.com/watch?v=oVa7C4RFkpE)

 

Ao continuar a sua caminhada, seis anos mais tarde, Liniker se apresenta a partir de outra perspectiva. Não mais sem saber a que posição deve demarcar sobre a sua autodeclaração de gênero ou oscilando entre o feminino e o masculino. Após o processo vivenciado que a remeteu à questão ontológica em “estou sendo o que sou, sou o que é”, anos mais tarde ela se apresenta: sou Liniker, sou cantora, sou compositora, sou atriz, sou brasileira, sou uma artista transgênero. É certo que Liniker já havia se pronunciado a esse respeito há mais tempo, mas nesse momento, quando sobe em um palco, Liniker está não apenas se apresentando como artista, mas como um corpo-e-sujeito que rompeu a normativa estabelecida a ponto de ser reconhecida internacionalmente como um sujeito possível.

Ali, corpo-e-sujeito Liniker não estava como um ser inacreditável, como quando ouviu na rua, ao ir para a escola. Naquele lugar, além de receber o prêmio por seu talento e trabalho, corpo-e-sujeito Liniker se fez possível aos olhos do mundo. Juntamente à artista extremamente talentosa e merecedora do prêmio, também habita uma mulher trans que não fugiu de si mesma e que conseguiu romper diversas barreiras, sendo a primeira a ter reconhecimento internacional em um dos maiores prêmios da música, como o Grammy Latino.

Tal representatividade, ainda hoje, é de extrema importância, pois, por mais que se tenha avançado nesses últimos anos, o cenário brasileiro ainda é constituído pelo normativo que fecha os sentidos quando diante do corpo-e-sujeito que contraria a dita correspondência entre sexo biológico e gênero. De acordo com o Conselho Nacional de Saúde, o dossiê “Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020”, apontou que travestis e transexuais femininas, por fazerem parte do grupo de maior vulnerabilidade à morte prematura e violenta no país, têm expectativa de vida de 35 anos, menos da metade da expectativa de vida da população em geral: 74,9 anos (BRASIL, 2022). Desse modo, toda conquista alcançada pelas pessoas travestis e transexuais é, antes de mais nada, um gesto de resistência a uma estrutura histórica que utiliza da anatomia sexual para dividir a sociedade em polos antagônicos.

Sobre tais considerações e pensando em um corpo-e-sujeito sob o olhar do social nos meandros da cidade, é importante trazer, a esse respeito, o estudo de Orlandi (2014: 76) em que busca compreender a textualização da escrita do sujeito em si, na sua relação com a cidade, analisando a forma material sujeito histórica, com o seu corpo, inscrita na materialidade do espaço urbano. A autora (idem) propõe desenvolver a ideia de que a cidade possui uma narratividade urbana (ORLANDI, 2001)8 que não é constituída por um narrador em particular, mas por “um conjunto de espaços narrativos”.

Orlandi (2014), ao retomar seus escritos, se interessa em compreender como os sujeitos urbanos, que atravessam os processos já estabelecidos, se inscrevem em formulações próprias, se metaforizando e se subjetivando a ponto de desorganizarem o espaço urbano tradicional com seus modos de dizer, com as suas formas significantes outras. Conforme aponta, para se chegar ao real da cidade, interessa observar como se dá a constituição de momentos que reclamam sentidos e que se significam pela desorganização do discurso ordinário, tradicional, pela tomada de lugares, pela arte etc. (ORLANDI, 2001).

              Dessa maneira, Orlandi (2014, p. 77) toma como exemplo de narratividade urbana o Parkour para buscar compreender, nos espaços da cidade, os “trajetos e modos de impressão do corpo” inscritos enquanto “traçado narrativo.”. Para tanto, Orlandi (2014) também retoma os estudos de Beauvoir (2002 [1949]) quando essa autora, a respeito da teoria do materialismo histórico, diz que tal campo colocou em evidência diversas verdades importantes como, por exemplo, a de que a humanidade é uma realidade histórica e não uma espécie animal. Segundo Beauvoir (2002 [1949])9 apud Orlandi (2014), o indivíduo se define em suas escolhas através do mundo e é para este mundo que devemos voltar a atenção para que possamos responder às questões que nos intrigam sobre a vida em uma relação com o mundo.

Nesse passo, Orlandi (idem, p. 78) concorda com Beauvoir ao apontar “que não é na abstração biológica, nem só na energia muscular que podemos definir concretamente o corpo, mas nas referências existenciais, econômicas, sociais. Simbólicas.”. E indo além, pensando na perspectiva discursiva, segundo Orlandi (2014), o corpo pode ser compreendido pela interpelação ideológica, na produção de um imaginário, nos modos de individuação presentes em/no processo de identificação do sujeito10.

Assim, parafraseando Orlandi (2014), diante dos recortes de análise deste estudo, pode-se dizer, em um gesto de interpretação possível, que corpo-e-sujeito Liniker, ao se constituir na relação com o mundo, ao se inscrever em/por formulações próprias, desorganizando a norma tradicional, este se significa em sua tomada de posse do mundo. Tal significação pode ser observada pela sua simbolização no corpo a corpo com o social, com a sua exposição midiática, com a sua atuação e êxito profissionais – enfim, com todos os elementos que constituem a materialidade da cidade.

Dessa forma, Orlandi (2014, p. 79) pensa a narratividade da forma pela qual “uma memória se diz em processos identitários, apoiados em modos de individuação do sujeito, afirmando/vinculando (seu “pertencimento”) sua existência a espaços de interpretação determinados, consoantes a específicas práticas discursivas.” Assim, a partir do movimento de análise feito pela autora (2014) a respeito da inscrição do corpo na sua relação com a cidade, pode-se pensar a inscrição do corpo-e-sujeito outro na sua relação com o gênero, com a memória e com o social, através da cidade. Diante dos recortes em análise, é possível pensar em uma memória sobre corpo-e-sujeito sendo ressignificada pelo corpo-e-sujeito outro que rompe com os sentidos já estabelecidos pela memória do dizer e que segue seu caminho “Pela rua, pela calçada, pelos muros, por sobre obstáculos.” (ORLANDI, 2014, p. 82)

Desse modo, diante do corpo-e-sujeito Liniker, por exemplo, pode ser percebido que, segundo Orlandi (idem, p. 82), “uma memória se diz, desencadeando um processo identitário, apoiado em um modo de individuação do sujeito”. Essa memória, de acordo com a autora (idem), afirma seu pertencimento, sua posse de mundo, sua posse “de espaços de interpretação que o metaforizam na narrativa de seu próprio corpo, consoante a sua prática discursiva, materialidade do corpo em movimento, textualizando-se [...]”. Textualizando-se, aqui, na materialidade do próprio corpo enquanto espaço narrativo inscrito pelo urbano, produzindo, assim, um deslocamento11.

Em se tratando do corpo-e-sujeito outro, podemos compreender que, na ânsia de se inscrever, de se fazer significar para além do já-dito, há a fusão entre objeto/corpo e o instrumento/corpo aderindo-se mutuamente. O preconceito, entendido enquanto obstáculo para corpo-e-sujeito outro não se configura como tal, uma vez que não são impeditivos para sua existência. E, ainda, o corpo não permanece corpo, ou seja, o corpo biológico ali não permanece enquanto corpo do sujeito. Em tais recortes, corpo-e-sujeito Liniker nos mostram a forma sujeito histórica em movimento, traçando novos rumos para significar e inscrever corpo-e-sujeito enquanto parte da cidade, do social.

Dessa forma, pode-se compreender que o corpo-e-sujeito outro, ao passo que se inscrevem na memória do dizer, demonstram um funcionamento discursivo que se textualiza nos/pelos corpos de sujeitos que adentram e atravessam os espaços sociais, como a rua, a escola, o lar, etc. Assim, ao tomar o espaço da rua, por exemplo, em seu cotidiano, o corpo empírico é, então, corpo simbólico: “feito de espaço de interpretação, movimento e traçado.” (ORLANDI, 2014, p. 83). Corpo-e-sujeito outro se inscrevem em/por formações discursivas para além do normativo, deslizando os sentidos do corpo-e-sujeito na cidade, marcando, assim, sua inscrição no espaço social, através do movimento da/na rua. Por mais que Liniker ouça, de outras formas, um “eu não acredito”, sua presença no espaço urbano também o inscreve enquanto parte do meio social.

 

 

 

Considerações Finais

Conforme ensina Orlandi (2014), as palavras, gestos e corpos são governados na/pela sociedade e os sentidos se constituem nos percursos históricos, filiando-se a memória e submetendo-se a processos que visam estabilizá-los. Assim, o espaço urbano é organizado e estabilizado pelas diferentes esferas administrativas como a escola, a igreja, a família, etc. que estabelecem sentidos, fixando na memória do dizer sentidos específicos também para corpo-e-sujeito. No entanto, a aparição do corpo-e-sujeito outro nesses espaços sociais desorganiza o discurso administrativo, o discurso da divisão social entre os sexos, o da dominação masculina. A sua aparição no meio social provoca a irrupção do corpo-e-sujeito que traça sentidos outros, resistindo, mostrando seu poder de ruptura e deslocando, assim, os sentidos já dados tanto para corpo quanto para sujeito.

Conforme Orlandi (2014, p. 84), “O sujeito se busca nas formas que alteram sua relação com seu corpo”. Dessa forma, no que tange a significação do corpo-e-sujeito outro não nos compete separá-los, dividi-los em masculino/feminino, homem/mulher. No corpo-e-sujeito outro, tal divisão não faz sentido. Em seu processo de constituição, um brinco, uma saia, um colar não são meros utensílios, assim como a barba, o cavanhaque, o pênis não simbolizam apenas os dados biológicos. Juntos, tais elementos (re)significam e (re)inscrevem corpo-e-sujeito, confrontando o normativo, através dessa inscrição no espaço urbano, em sua significação enquanto espaço social12.

Assim, os recortes analisados nos permitem dizer, em um gesto de leitura possível, que outras formas de significação para corpo-e-sujeito se constituem e atravessam a memória do dizer produzindo um efeito de suspensão da norma e, na medida em que se inscrevem, podem produzir um efeito de ruptura da lógica estabelecida. Diante disso, pensar a desestabilização da significação dos corpos e sujeitos, no que concerne à divisão entre sexo e gênero, implicará, certamente, na reflexão de novas estratégias que buscam dar conta de significar e organizar as relações sociais de força.

 

Referências Bibliográficas

 

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LAQUEUR, T. Inventando o sexo – corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. Tradução: Vera Whately

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LINIKER. Discurso proferido no Grammy Latino, em 17 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oVa7C4RFkpE Acesso em 17/03/2023

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PEREIRA, L. N. A (des)estabilização de sentidos para corpo-e-sujeito inscritos pela sexualidade e pelo gênero: efeitos de ruptura. Pouso Alegre: UNIVÁS, 2017. 164 p. (Tese de Doutorado). Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=5013458 Acesso em: 17/03/2023

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Data de Recebimento: 11/04/2023
Data de Aprovação: 02/05/2023


1  A referida noção “corpo-e-sujeito” foi pontualmente discutida e aprofundada na tese intitulada “A (des)estabilização de sentidos para corpo-e-sujeito inscritos pela sexualidade e pelo gênero: efeitos de ruptura” (PEREIRA, 2017).

2  Importante colocar que o conceito de “des-historicização” a que Bourdieu (2002) se refere não é o mesmo para a Análise de Discurso. Para esse autor tal termo diz respeito à perda de sentido que determinado elemento social pode sofrer ao ser desautorizado; enquanto que o seu contrário, a “eternização” representa os sentidos que ainda fazem valer para a organização social, sendo repetidos ao longo da história. Já para a Análise de Discurso, a des-historicização (ORLANDI, 1998) consiste no apagamento dos sentidos por uma censura que impossibilita a metaforização dos sentidos e impede, assim, que os sentidos possam vir a ser outros. Dessa maneira, ao utilizar o termo “des-historicização” proposto por Bourdieu (idem) a respeito da ordem da dominação masculina, refere-se, aqui, ao enfraquecimento que tal ordem vem sofrendo na medida em que outros sentidos para corpo-e-sujeito vão se materializando e se inscrevendo discursivamente.

3  “As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver uma construção social naturalizada (os “gêneros” como habitus sexuados), como o fundamento in natura da arbitrária divisão que está no princípio não só da realidade como também da representação da realidade [...]”. (BOURDIEU, 2002, p. 08-09).

4  Galeno (século II d.C), de acordo com Laqueur (2001), concebia o corpo feminino tal qual o masculino, de maneira que ambos eram constituídos de forma isomórfica em sua estrutura sexual, com a diferença de que o homem apresentava seu sexo para fora e a mulher para dentro. Laqueur (idem) explica que Galeno “demonstrava com detalhes que as mulheres eram essencialmente homens, nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – resultara na retenção interna das estruturas que no homem são visíveis na parte externa” (LAQUEUR, 2001, p. 16).

5  De acordo com Laqueur (2001), durante o período Renascentista, as categorias de gênero (feminino/masculino) tinham como base as seguintes distinções do gênero: ativo/passivo, quente/frio, com forma/sem forma. Assim, o pênis externo (masculino) ou interno (feminino) era apenas um elemento diagnóstico, sendo as mudanças da estrutura corporal do sujeito que determinavam sua passagem de uma categoria (feminina ou masculina) para outra.

6  Para o autor (2002): “A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio de predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos.”. (BOURDIEU, 2002, p. 49).

7  Conforme Orlandi (2010, p. 36), “Quando pensamos discursivamente a linguagem, é difícil traçar limites escritos entre o mesmo e o diferente. Daí considerarmos que todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásticos e processos polissêmicos. Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno dos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco”. (ORLANDI, 2010, p. 36)

8  ORLANDI, Eni P. Discurso e Texto. Ed. Pontes: Campinas, 2001.

9  BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. vol. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002 [1949].

10  Dessa forma, a autora aponta que: “Pensando esta materialidade do sujeito, o corpo é o corpo vivido pelo sujeito: “tomada de posse do mundo e o esboço de seus projetos”. Portanto, além da existência/práxis, trazemos, para a reflexão, a linguagem e a ideologia, ao pensar a constituição do sujeito na relação com o mundo, a sociedade, a história. E podemos dizer que o sujeito do Parkour se significa, tomando posse do mundo/simbolizando-se no corpo a corpo com a materialidade da cidade”. (ORLANDI, 2014, p. 78).

11  Conforme Orlandi (idem), “Prática que o metaforiza na narrativa de seu próprio corpo no movimento de sua autoria. Dito de outra forma: corpo textualizando-se no espaço; materialização do espaço em corpo em movimento. Inseparáveis. O sujeito, em sua materialidade, inscreve-se enquanto corpo como um significante de si, inseparável do traçado que o metaforiza no corpo da cidade. Indistintos. Uma só forma material: a que se faz narrativa. Conjugam-se. O objeto/muro e o instrumento/corpo. Atravessam-se. Fundem-se. Um adere ao outro e transmudam-se: o obstáculo não é obstáculo, o corpo não permanece corpo, é forma em movimento. Traço.”. (ORLANDI, 2014, p. 82).

12  De acordo com Orlandi (idem, p. 85) “[...] corpo e espaço reescrevem o sujeito, significando-o em outra ordem de relação, deslocando seus sentidos, desorganizando a ordem do urbano, em que seu modo e condições de circulação traz, em sua materialidade, sua forma de resistência, em sua formulação, sua escrita de si. Sujeito em movimento, em fuga.”. (ORLANDI, 2014, p. 85).