As luzes que descobriram as liberdades
inventaram também as disciplinas.
(Foucault)
Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça
com as fábricas, com as escolas, com os quartéis,
com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?
(Foucault)
A presente reflexão toma como ponto de partida o seguinte questionamento “O que é Museu?”. Dentre as respostas formuladas, há aquelas que dão a conhecer um conjunto de sentidos de/sobre museu que circulam em nossa sociedade, a saber: instituição de arte; espaço de memória; espaço de cultura e de história; instituição de preservação do patrimônio material e imaterial, entre outros. Esse conjunto de definições têm no senso comum seu lugar de ancoragem. Na maioria das vezes, essas respostas são formuladas a partir de modos distintos de se dizer o museu que levam em consideração experiências do cotidiano dos sujeitos e suas histórias de vida. Nessa perspectiva, todos sabemos o que é museu e temos o que dizer de/sobre eles a partir de nossa história. Outras possibilidades de respostas ao questionamento inicial são aquelas que estão sustentadas em uma perspectiva científica, em um domínio teórico, em uma disciplina, cujo objeto de investigação é o museu. Podemos citar, por exemplo, no domínio das ciências humanas, a História, a Antropologia, a Museologia, a Museografia e a Curadoria. Tais domínios disciplinares desenvolvem um trabalho necessário à institucionalização, organização e manutenção dos museus e cada um deles vai definir museu a partir de seu quadro epistemológico. Nessas abordagens, museu constitui um objeto de estudo compreendido a partir de um dispositivo teórico-analítico.
De nossa posição, buscaremos responder à pergunta introdutória, a partir do domínio das ciências da linguagem. Tomar o museu como um objeto de estudo, nessa perspectiva, implica produzir deslocamentos no modo como ele tem sido compreendido no âmbito das disciplinas tradicionais, descritas acima. Para tanto, inscrevemo-nos no domínio da análise de discurso, tal como proposta por Pêcheux (1969) e Orlandi (2002). Isso significa que museu será compreendido, aqui, como um espaço de linguagem: trata-se, pois, de considerá-lo como lugar de significação permeado por gestos de leitura e interpretação, como instituição de memória e como arquivo, entre outros. Orlandi (2014) chama a atenção para o fato de que o museu é, antes de tudo, uma instituição e destaca que, tal como compreendemos em análise de discurso, é por meio das instituições e dos discursos que os sujeitos, afetados pelas condições de produção, são individuados pelo Estado que coloca em relação sujeitos e sentidos, como parte do processo de produção da memória do indivíduo, do Estado, do conhecimento e da sociedade (ORLANDI, 2014).
A autora esclarece que sua posição é aquela de compreender, por um lado,
o museu como parte do modo de individuação do sujeito capitalista em nossa formação social. Dessa relação resulta um sujeito em cuja individualidade, conta (ou um indivíduo afetado pela) a forma como o Estado o relaciona com sentidos sociais que se apresentam como parte de sua memória (do indivíduo, do Estado, da Sociedade). Por outro lado, e não menos importante, podemos pensar o museu como parte do processo de produção de arquivos, ou seja, discursivamente, como discurso documental (ORLANDI, 2014, p. 2).
A partir dessa reflexão, a autora define museu como “prática de significação”. Com efeito, ao fazermos uma incursão por um museu, deparamo-nos com um espaço de produção de sentidos que pulsa, nos interpela e nos leva, compulsoriamente, a produzir gestos de leitura. Diante de tais condições de produção, forçosamente, interpretamos! Interpretamos o museu, interpretamos os sentidos contidos nele, os sentidos produzidos por ele e para ele! Esses gestos de leitura e de interpretação colocam em funcionamento o saber discursivo sob o qual se funda todo o dizer (a memória discursiva) (Orlandi, 2002). Em outras palavras, o espaço da interpretação no qual o visitante do museu inscreve seu gesto deriva da sua relação com a memória discursiva (saber discursivo), interdiscurso (Orlandi, 2004).
Os gestos de interpretação se produzem, segundo Orlandi (2004), porque há incompletude, porque há silêncio e, acrescento, porque há abertura do simbólico e espaço para produção de outros sentidos. Na perspectiva discursiva, o trabalho com a abertura do simbólico considera que a matéria significante tem plasticidade e se constitui plural. Ou seja, os modos de significação são diversos. De acordo com Orlandi, considerando que
os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem com os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação diversos: pintura, imagem, música, escultura, escrita [e o museu, acrescento], etc. A matéria significante – e/ou a sua percepção – afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele. (ORLANDI, 2004, p. 12)
Assim, podemos dizer que a interpretação ganha espessura a partir da relação que se estabelece entre o sujeito e a matéria significante, a saber, o museu. Os gestos de interpretação se produzem nos laços e/ou nas falhas e/ou nas fissuras, elementos estes constitutivos dessa relação. Isso nos leva a perceber que, na historicidade dos discursos que compõem o museu, os efeitos da significação, produzidos no jogo tensivo entre o mesmo e o diferente, conduzem a outros sentidos que se irrompem possibilitando ressignificações e deslocamentos.
À medida que se considera que “somos individuados pelo Estado através de instituições e discursos” (ORLANDI, 2014), compreendemos que a interpretação, inscrita na história, dá a conhecer o funcionamento da ideologia. De fato, os gestos de intepretação se produzem sempre a partir de uma posição, de um lugar da história e da sociedade. Por isso, podemos dizer que a interpretação é política, isto é, ela tem uma direção de sentidos que nos permite compreender o processo de textualização do político na linguagem, a simbolização das relações de poder que são constitutivas do dizer: “o político reside no fato de que os sentidos têm direções determinadas pela forma da organização social que se impõe a um indivíduo ideologicamente interpelado” (ORLANDI, 2004, p. 34).
Considerar os museus como práticas de significação, que materializam o confronto do simbólico com o político, conduz a refletir sobre o modo como o processo discursivo é constituído, em especial, como as formações discursivas, as formações ideológicas e a memória discursiva se constituem neste espaço significante que é o museu. No caso, por exemplo, do Museu Penitenciário Paulista (MPP), objeto desta reflexão, para conhecer o funcionamento do processo discursivo foi preciso, num primeiro gesto de análise, compreender como esse museu significa e como é significado na relação com a cidade e, aqui, de modo muito específico, com o Parque da Juventude, endereço do museu e que abrigou, por décadas, o Complexo Penitenciário do Carandiru; como esse museu significa e como é significado na relação com as instituições mantenedoras, especificamente, o governo de São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária e a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo; como esse museu significa e como é significado na relação com objetos simbólicos e com os textos expográficos[1] que compõem a exposição interna e externa; como esse museu significa e como é significado na relação com suas condições de produção; como esse museu significa e como é significado na relação com outros museus; e, ainda, na relação com o público, tanto aquele que está ali diretamente implicado (detentos, agentes penitenciários, policiais, operadores do direito, etc.) quanto aquele que visita o museu.
No movimento deste gesto analítico, é possível observar que a análise do processo discursivo aponta para a compreensão do museu, em sua historicidade, como espaço político-simbólico de produção de sentidos sustentado e afetado pelas relações de poder e pela conjuntura histórico-ideológica. A compreensão do processo discursivo, ou seja, daquilo que faz o museu significar, está diretamente relacionada a todos esses elementos descritos acima, trabalhados, às vezes, de modo parcial, mas cujos efeitos de sentidos se coadunam, apontando para compreensão de todo um processo discursivo que significa o Museu Penitenciário Paulista.
Turismo na prisão
Há pouco mais de um século, com o desenvolvimento científico e industrial, os museus foram se transformando em instituições culturais e, pouco a pouco, foram redefinindo as práticas e as representações das relações entre arte, cultura e sociedade. Se no século XVIII e XIX, tínhamos, em sua maioria, museus de belas artes, hoje, os museus se organizam a partir de diferentes temas, como, por exemplo, Museus de Arte, Museus de História, Museus de Ciências, Museus Culturais, Museus Gerais e Museus Especializados, entre outros.
O Museu Penitenciário Paulista, localizado na cidade de São Paulo, objeto deste estudo, pode ser descrito como um museu especializado cuja temática se inscreve no que, na França, tem sido chamado de “turismo prisional”, expressão que, segundo Ricordeau e Bugnon (2018, p. 606), “abrange as visitas aos “museus de prisão” que se situam no interior ou na proximidade de estabelecimentos prisionais”[2]. De acordo com os autores, a “Prisão de Alcatraz”, em São Francisco, na Califórnia (EUA), aberta ao público desde 1973, a “Prisão de Eastern”, na Filadélfia, na Pensilvânia (EUA), com visitação pública desde 1994, e o “Le nuove”, Museu do Cárcere, em Turim, na Itália são exemplos de “museus de prisão”, isto é, são museus que estão instalados em antigos estabelecimentos prisionais. Em contrapartida, o Museu da Prisão do Texas, localizado em Huntsville, no Alabama (EUA) e o Museu da Penitenciária do Estado da Louisiana, situado em Angola, na Louisiana (EUA) estão instalados em edifícios sem qualquer função penitenciária ainda que se inscrevam também nessa categoria de museus que tratam do universo do cárcere.
O interesse pelo turismo prisional não é recente. Entretanto, a partir do começo dos anos 2000, assiste-se a um movimento de patrimonialização do sistema penal em que, como mostram Piché e Walby (2018, p. 645),
os antigos estabelecimentos prisionais são cada vez mais frequentemente transformados em museus ou locais de turismo prisional onde às vezes são oferecidas visitas guiadas aos espaços prisionais (...). Este fenômeno de reabilitação do patrimônio prisional, em que um lugar continua a produzir sentidos sobre a privação de liberdade e inflexão da dor (...), é comum em todo o mundo[3].
Inscrevendo-se na mesma posição adotada por Ricordeau e Bugnon (2018), os autores defendem que o turismo prisional, como campo de pesquisas, mostra-se absolutamente produtivo, especialmente, se for atravessado por questionamentos sobre os sentidos e os discursos que acompanham as transformações de antigas prisões em museus, bem como sobre sua contribuição à reprodução ou à subversão das lógicas e práticas atuais de encarceramento (PICHÉ e WALBY, 2018). O turismo prisional é um tema que comporta fenômenos múltiplos que podem ser agrupados em três grandes categorias:
1) museus e exposições cujos temas estão relacionados com o sistema penal (museus policiais, museus do crime, etc.);
2) o “turismo prisional” (ver também “Turismo prisional, patrimônio e sistema penal), expressão que designa as visitas oferecidos (pontualmente ou não) a antigos locais de detenção “Museus de prisão”;
3) e, por último, a preservação e/ou reconversão de locais associados ao sistema penal (em particular prisões, delegacias e tribunais)[4] (RICORDEAU; BUGNON, 2018, p. 607)
Considerando as especificidades do Museu Penitenciário Paulista, compreendemos que este estabelecimento se inscreve na perspectiva do turismo prisional filiando-se às três categorias apontadas por Ricordeau e Bugnon (2018). Assim como os outros “museus de prisão”, apontados acima, o MPP se localiza no mesmo endereço onde, a partir de 1920, foi criada a penitenciária do Estado de São Paulo. Com o aumento da criminalidade, a partir da década de 50, foi preciso ampliar o sistema carcerário paulista e, no entorno da Penitenciária do Estado, foram sendo criadas outras instituições prisionais que culminaram, mais adiante, na formação do Complexo Penitenciário do Carandiru. Até o início dos anos 2000, o Complexo do Carandiru era composto por nove (9) pavilhões, onde funcionavam a Casa de Detenção “Prof. Flamínio Fávero”, a Penitenciária do Estado de São Paulo, a Penitenciária Feminina da Capital e pelo Centro de Observação Criminológica (COC).
O Carandiru, como ficou conhecido este espaço urbano, durante muito tempo, se constituiu como uma referência, tanto para o sistema prisional (lugar para onde a maioria dos detentos era enviada), quanto para o funcionamento da cidade de São Paulo (ponto de referência no percurso dos sujeitos no espaço urbano. Entretanto, na década de 90, aos sentidos que já circulavam sobre o Carandiru, somaram-se outras significações a partir do que aconteceu em 2 de outubro de 1992.
Na ocasião, cento e onze (111) detentos foram mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, que entrou no Complexo do Carandiru, mais especificamente, no Pavilhão 9, para conter uma rebelião. Todas as mortes aconteceram num período de aproximadamente 24 horas. O episódio ficou conhecimento internacionalmente como “O Massacre do Carandiru”. Entretanto, no discurso oficial do Museu Penitenciário Paulista e do governo do Estado, o registro é de um “motim de grande repercussão”, como mostraremos adiante.
Alguns anos após a tragédia, o governo do Estado de São Paulo promoveu algumas ações que resultaram na reconfiguração do espaço urbano: dos noves (9) pavilhões que abrigavam os detentos, cinco (5) foram implodidos a partir de 2002; dois (2) continuam sendo ocupados pela penitenciária feminina; e outros dois (2) pavilhões que abrigavam os detentos foram reformados. Atualmente, em um deles funciona a biblioteca do Estado de São Paulo e no outro a Escola Técnica Carandiru. Toda a área foi remodelada: onde ficavam os pavilhões demolidos e no entorno da atual biblioteca e da Escola Técnica, foram criados espaços de lazer para comunidade, compondo-se assim, uma grande área de entretenimento ao ar livre em que se destacam os espaços para esportes, cultura e educação. É neste local, mais especificamente, na Avenida Záki Nárchi, 1.207, no Bairro Carandiru, na zona norte de São Paulo, que está situado o Museu Penitenciário Paulista. A nova configuração do antigo Complexo do Carandiru foi inaugurada, em 2003, pelo governo estadual e foi nomeada oficialmente como Parque da Juventude Dom Paulo Evaristo Arns[5]. Atualmente, o lugar é conhecido apenas como Parque da Juventude[6].
Discursivamente, compreendemos que, em sua historicidade, a localização do Museu Penitenciário Paulista, no espaço urbano do antigo Complexo do Carandiru, traz consigo uma memória de/sobre a cidade de São Paulo e de/sobre o sistema prisional brasileiro. Além disso, da perspectiva da análise de discurso, entendemos também que a ressignificação (ou reconfiguração) do espaço urbano e sua renomeação produzem como efeito o silenciamento de sentidos e a tentativa de apagamento da memória e da história do Carandiru, especialmente, do massacre. Esses gestos colocam em funcionamento a “política do silêncio”, noção teórica proposta por Orlandi (2008, p. 57) que, conforme a análise que temos desenvolvido, parece atravessar todo o processo discursivo em torno desse espaço urbano e desse museu.
Em minhas reflexões, tenho me dedicado a compreender uma outra vertente do não-dito, a do silêncio. Esta se origina no fato de que a linguagem é política e que todo poder[7] se acompanha de um silêncio, em seu trabalho simbólico. É o que tenho chamado “política do silêncio”, que, aliás, se subdivide em duas formas de exercício a significação:
O silêncio constitutivo, ou seja, a parte do sentido que, necessariamente, se sacrifica, se apaga, ao se dizer. Toda fala silencia necessariamente. A atividade de nomear é bem ilustrativa: toda denominação circunscreve o sentido nomeado, rejeitando para o não-sentido tudo o que nele não está dito;
O silêncio local: do tipo da censura e similares; esse silêncio é o que é produzido ao se proibirem alguns sentidos de circularem, por exemplo, numa forma de regime político, num grupo social determinado de uma forma de sociedade específica, etc. (ORLANDI, 2008, p. 57).
O funcionamento dessa política do silêncio (Orlandi, 1990) pode ser observado no discurso do museu, apresentado em seu website[8], que anuncia, entre outras coisas, o aspecto pedagógico e turístico da proposta do MPP que busca (re)significar os sentidos produzidos em torno do Sistema Penitenciário Paulista:
Figura 1: MPP comemora dois anos de inauguração[9]
À medida que analisamos as condições de produção da institucionalização do MPP, compreendemos o funcionamento da política do silêncio e da tentativa de apagamento de outras versões da história em torno do espaço urbano em que ele está situado e em torno do próprio Museu. O endereço da tragédia do Carandiru, no discurso do Museu, torna-se argumento para sua divulgação turística (Figura 2). Conforme apontam Ricordeau e Bugnon (2018), a localização do Museu em um espaço que abrigou (e ainda abriga) instituições penais é um elemento importante na promoção do turismo prisional e tem sido explorada por diversos museus prisionais na Europa e nos Estados Unidos.
Figura 2: Apresentação do Museu Penitenciário Paulista[10]
Se do ponto de vista do turismo prisional, a localização no espaço urbano é um aspecto relevante para sua divulgação, do ponto de vista discursivo, essa localização produz efeitos de sentidos importantes para a compreensão do processo discursivo que é posto em funcionamento nesse museu. Isso porque a localização já produz sentidos para este museu na sua relação com a história e com a memória da cidade de São Paulo. Também produz sentidos para os sujeitos que transitam nesse espaço urbano: o nome “Carandiru”, que antes era utilizado metonimicamente para “nomear” todo o complexo penitenciário, continua muito presente nos itinerários dos sujeitos na cidade, pois, além de dar nome ao bairro, ele está eternizado no nome da estação de metrô e no terminal de ônibus urbano.
Do ponto de vista institucional, o Museu Penitenciário Paulista é apresentado como um museu especializado mantido pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado. Ou seja, ele constitui um departamento do Gabinete do Secretário, sem recursos próprios. Essa “filiação” é um elemento importante na compreensão do processo discursivo: trata-se de mais um elemento que compõe as condições de produção desse museu e que aponta para uma direção de sentidos no que se refere à versão registrada da história e da memória do sistema penitenciário paulista, a saber, aquela do Estado.
Em seu percurso de visitação, o Museu Penitenciário Paulista já institui uma direção de sentidos e, consequentemente, de leitura e interpretação que se apresenta ao visitante, especialmente, sob a forma de textos expográficos. Acompanhando ou complementando informações de/sobre a exposição, os textos expográficos são “exibidos ou colocados gratuitamente à disposição dos visitantes dentro da exposição, independentemente do seu suporte”[11] (RIGAT, 2005, p 155). Compreendemos assim, que esses textos colaboram orientando a observação, a leitura, a intepretação e a compreensão dos artefatos que compõem o museu. No que concerne ao seu modo de apresentação, Margarito (2015, p. 49), por sua vez, esclarece que os textos expográficos estão disponíveis em múltiplos suportes: catálogos impressos, áudios, “painéis, panfletos, caracteres colados à parede, escrita de luz, telas...”[12], etc. No que se refere ao MPP, os textos expográficos constituem um recurso amplamente explorado desde o início da exposição.
De fato, a imersão do visitante no universo do turismo penitenciário se dá a partir da linguagem, em uma antessala (Figura 3)[13], em que se apresenta um conjunto de vocábulos que remete, especialmente, ao universo do Direito Penal (Figura 4). Neste espaço, as palavras, expostas nas paredes e no teto, constituem a exposição.
O espaço em estudo é designado, no catálogo da exposição, como “chuva de palavras” (Massmann, 2018) e é por meio delas que o Museu objetiva ‘promover’ a ambientação do visitante ao universo do turismo prisional. Entretanto, observamos que, na seleção das palavras ali expostas, expressões e gírias empregadas pelos detentos são minoria. À medida que consideramos este espaço discursivamente, compreendemos que esse conjunto de palavras, anunciando inclusive no Catálogo Impresso da Exposição do MPP, dá a conhecer a formação discursiva e ideológica a que tal instituição se filia.
Figura 4: Representação das palavras que compõem o “Foyer”[15]
Analisando o funcionamento deste espaço do museu, podemos compreender que há aí um silenciamento, a saber, o silenciamento das vozes (e das manifestações de linguagem) dos detentos. Como esclarece Orlandi (1997), o silenciamento não é o mesmo que silêncio. Silenciar significa “pôr em silêncio”. De acordo com a autora, pelo estudo do silenciamento, compreendemos “que há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito” (ORLANDI, 1997, p.12). O roteiro de visitas do Museu Penitenciário Paulista vai apontando, desse modo, para um percurso de sentidos institucionalizados que vão se mostrando ao visitante e que funcionam coercitivamente.
O Museu se propõe a apresentar uma memória de/sobre o sistema penitenciário paulista: trata-se da memória institucionalizada no/pelo museu mantido pelo Estado. Ao observarmos o discurso institucional, reproduzido no website do MPP, verificamos que ele objetiva dar a conhecer a história do Sistema Penitenciário Paulista, sem considerar, no entanto, uma parte importante dos sujeitos que construíram essa história, a saber, os detentos. Ou seja, o público-alvo do sistema penitenciário é apagado de sua história e, consequentemente, do museu. Esse apagamento constitui mais um elemento na regularidade da pena, na medida em que o sistema de contenção funciona pelo tratamento diferenciado que nega aos detentos a própria condição de pessoa. Sobre essa questão, Zaffaroni (2015, p. 18) explica que “A rigor, quase todo o direito penal do século XX, na medida que teorizou admitindo que alguns seres humanos são perigosos e só por isso devem ser segregados ou eliminados, coisificou-os sem dizê-lo”.
Figura 6: Apresentação do Museu[17]
Outro aspecto que contribui na compreensão do processo discursivo posto em funcionamento nesse museu, diz respeito ao silenciamento e ao apagamento dos sujeitos detentos no curso da exposição: no percurso da visita, na primeira sala, após o “Foyer”, apresenta-se ao visitante um espaço dedicado às artes plásticas que é apresentado pelo seguinte texto expográfico:
Figura 7: Texto expográfico que apresenta o acervo de quadros[18]
Chama a atenção aqui o fato de não se dizer sobre os sujeitos-artistas, nem mesmo sobre o processo de criação das referidas obras de arte que representam, segundo o MPP, a “expressão cultural no cárcere”. Frente ao conjunto de obras expostas, um ponto se destaca: na maioria das telas, não há identificação do artista ou essa identificação está incompleta. Nessas condições de produção, mais uma vez, a instalação da política do silêncio (ORLANDI, 1997) censura o sujeito detento e produz efeitos de sentido de modo que sua “voz” é silenciada e sua autoria, materializada por meio de seus gestos de interpretação, que se manifestam no savoir-faire artístico, são aqui apagados. Orlandi (1997, p. 78) ressalta que o mecanismo da censura possui um funcionamento muito interessante: “como, no discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo, ao se proceder desse modo se proíbe ao sujeito ocupar certos “lugares”, ou melhor, proíbem-se certas “posições” do sujeito”.
Esse mesmo funcionamento que produz apagamento/silenciamento é observado na seção chamada de “Áudio Acervo” que apresenta a memória oral do sistema penitenciário paulista, a partir de um conjunto de quatro (4) podcast com os seguintes depoimentos:
Figura 8: Áudio acervo[19]
Observa-se que na lista de quem tem o direito à palavra, aqueles cuja voz e história deve ser registrada, não há nenhum depoimento de detento. Na versão do MPP, a voz que deve ser ouvida, registrada e armazenada neste arquivo on-line da instituição é aquela dos agentes, administradores, coordenadores e diretores que, em algum momento, prestaram seus serviços ao Sistema Penitenciário Paulista. É a política do silêncio, como descrita por Orlandi (1997), que está instalada no universo do MPP:
a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada. (...)
Considerações iniciais: O que é Museu?
Figura 3: “Foyer”[14]
Figura 5: Descrição do Espaço “Foyer” (exposição interna)[16]
Na imagem apresentada abaixo, é possível observar ainda, que a função social do museu está centrada na pena e é a partir da pena, ou ainda, da punição, que a relação entre indivíduo e sociedade está ali representada. Essa formulação produz efeitos de sentido importantes dadas as condições de produção desse discurso: há uma desumanização do sujeito-detento: ele não está presidiário; ele é presidiário, ou seja, a criminalidade parece lhe ser constitutiva, conforme o discurso institucional.