O gerente, porém, desde as primeiras palavras de Gregor, já tinha lhe dado as costas, [...] os lábios abertos, demonstrando asco.
Kafka – A Metamorfose
Das condições (in)sensíveis
Todos nós já passamos por alguma experiência na qual reconhecemos o perfume de um conhecido em algum lugar incomum. Esse momento pode desencadear sentimentos muito diferentes, que variam de saudades da infância a completa repulsa por determinada pessoa ou situação. É contemporâneo a nós atribuirmos, sem qualquer esforço intelectual, essa experiência à memória olfativa; todavia, a curiosidade humana para desvendar os mistérios dos odores não é algo recente. Ela remonta à Antiguidade[1], quando médicos insistiam na ideia de que, dentre todos os órgãos dos sentidos, o nariz, por sua aproximação com o cérebro, seria a origem dos sentimentos humanos.
Nas próximas páginas, gostaria de refletir sobre o cheiro. Especificamente, sobre o modo como a memória olfativa pode ser atravessada pela memória discursiva em seus trajetos. Interesso-me, pois, pelas discursividades que permitem algumas interpretações no momento em que lidamos com o cheiro do outro, por isso, recorro ao dispositivo da Análise de Discurso de linha materialista (doravante, AD) como tentativa de dar conta da parte que me cabe na curiosidade a respeito dos mistérios mencionados. Uma curiosidade que vem se especificando à medida que conheço um pouco mais os dispositivos teóricos e metodológicos da AD e suas brechas para a compreensão de diferentes materialidades significantes (LAGAZZI, 2009).
Alguns passos foram dados nessa direção[2]. Contudo, foi recentemente, ao me deparar com a narrativa fílmica de Parasita (2019), que me dei conta da possibilidade de avançar em algumas questões a respeito dos odores. Refiro-me ao cheiro em relação ao sujeito que, em sua opacidade discursiva, abre-se para possibilidades de imbricação com outras redes significantes. Parasita, longa-metragem dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-Ho, vencedor do Oscar de melhor filme em 2020, se constitui, pois, como o objeto principal desta breve investigação, possibilitando indagações em torno do estatuto do cheiro no audiovisual e do modo com a resistência simbólica irrompe no entrecruzar do corpo, do gesto, da língua e do cheiro, em cenas que vão explorar, ao máximo, laços e limites sociais.
Em Parasita, somos apresentados à família Kim, composta por pai, mãe, filho e filha. Moradores de um subúrbio na Coreia do Sul, a família vive em condições precárias, em uma espécie de porão em um bairro de Seul. Um pequeno espaço, de onde é possível ver o mundo de uma perspectiva inferiorizada: por uma greta no nível do chão. Desempregada, a família tenta fugir como pode de sua precária condição de vida, até o momento em que o filho, o jovem Ki-taek, tem a oportunidade de ministrar aulas particulares de inglês para a filha de uma família rica, os Park.
O núcleo familiar de classe alta recebe Ki-taek como professor. Agora com um novo nome, Kevin, e portando um diploma falsificado que o torna apto à vaga, ele passa a conviver com a família Park. Esse novo emprego desencadeia uma série de ações que farão, pouco a pouco, os Kim empregarem-se na luxuosa mansão. Isso se dá por meio de trapaças pelas quais os antigos empregados dos Park vão sendo sabotados e, um a um, perdem espaço na casa para os novos empregados[3].
O modo como isso ocorre vai apagar os laços de parentescos dos Kim: eles recebem novos nomes e comportam-se como verdadeiros desconhecidos na presença dos patrões. Um plano perfeito, não fosse o cheiro.
A relação entre os membros de cada uma das famílias desperta a atenção. A família Kim é textualizada no filme em seus sonhos conturbados pela vida difícil, em seu companheirismo, que, em diversos momentos, aproxima-se de conluio. Na convivência no subsolo, sem limites físicos fortemente estabelecidos, pai, mãe e filhos se misturam em uma cumplicidade orgânica: eles fazem alguns bicos juntos, comem juntos, planejam seus golpes juntos, embebedam-se juntos. Diferente da família abastada que, no frio espaço da luxuosa casa, mostra-se desempenhando papéis bem definidos em sua vivência diária, os Kim são apresentados em uma unicidade sintomatizada pelo cheiro. Um cheiro que, em dado momento da narrativa, é notado pelo filho mais novo dos Park, Da-song.
Dada a forte ameaça à trapaça orquestrada, a família Kim reúne-se para decidir o que fazer em disfarce ao cheiro relatado pelo garoto. Enquanto o Sr. Kim sugere individualizar os materiais de higiene pessoal, sua filha, Ki-Jung, sentencia: o cheiro é proveniente do semiporão, mostrando a insuficiência das mudanças sugeridas. Aqui, resta delineada uma importante marca significante: o modo como a inscrição do cheiro se dá atrelada à casa dos Kim.
A casa, elemento crucial na narrativa, é notada como espaço que constitui a família Kim. Um espaço que se imiscui nos sujeitos, numa relação naturalizada pela convivência e que é ameaçada pela invisibilidade do cheiro que escapa. O cheiro, até então imperceptível para a família, provoca uma tensão entre as relações. Aliás, as tensões provocadas pelo cheiro, pelo modo como é representado imaginariamente, afeta os processos de (re/des)conhecimento dos sujeitos, com destaque para a figura do Sr. Kim.
Quando o cheiro dá os primeiros sinais de protagonismo, alinhavando momentos cruciais da narrativa, tem-se aí um importante ponto de análise daquilo que se apresenta como uma materialidade discursiva particular. Marcas significantes que me levam a rever seu estatuto no processo de produção de sentidos, uma vez que, em sua interseção com o corpo, o espaço e a língua, torna-se lugar de conflito, manifestando tensões sociais que eclodem na relação entre as famílias. Espaço do político, da disputa de sentidos, o cheiro no filme apresenta-se como uma materialidade significante que não poderia ser explicada apenas em termos de notas olfativas.
Nesse meu esforço de compreensão discursiva do cheiro, penso ser possível descrever o modo como ele se constitui e se formula[4] a partir dos limites impostos pelo material, no gesto cadenciado de interpretação e descrição de Parasita. De imediato, chego à questão da volatilidade e invisibilidade dessa materialidade, como primeiro ponto a ser considerado na investigação[5]. Uma vez que o cheiro apresenta impossibilidades no que diz respeito a sua descrição e apreensão, afinal estamos lidando com uma materialidade impalpável, sem início ou fim (o odor não parou de ser emanado só porque Da-song o notou) – à primeira vista, faz parecer que estamos diante de um projeto inexequível. Mas só à primeira vista. Sabemos que o domínio discursivo não é o domínio da experiência sensível, cujo pressuposto se assenta em uma subjetividade solipsista. A questão não é o que eu vejo ou apreendo do que eu vejo, mas a prática interpretativa a respeito do objeto discursivo abordado. Ficamos, assim, diante da densidade dos sentidos, das contensões de sentidos impostos por/na interseção do cheiro com outras formas materiais. A discussão caminha, portanto, para a compreensão de como o cheiro dá corpo aos sentidos a partir de sua relação com outras materialidades significantes.
Em um gesto analítico, proponho considerá-lo como uma materialidade significante flagrante, analisável graças a flagras, à possibilidade de (re)formulações engendradas a partir de imbricações entre diferentes materialidades: o cheiro no corpo, o cheiro no gesto, o cheiro no/do espaço. Quero dizer com isso que, apesar de sua opacidade, o que diz de sua materialidade significante particular, o cheiro é passível de ser textualizado na/pela língua (como é possível notar nas falas dos personagens de Parasita), em/por gestos simbólicos (tapar o nariz, franzir a testa, afastar-se ou aproximar-se do objeto da emanação) e no espaço (cheiro de lixão, cheiro de gueto, cheiro de shopping).
Uma materialidade significante flagrante investida de sentidos, os quais, como sabemos, não se originam no sujeito, fazendo parte de um trabalho ideológico cujas determinações históricas permanecem rarefeitas. Nesse sentido, para especificar a questão, invoco aquilo que procurei chamar de memória da olfação. Chamo a atenção para um deslocamento imperativo: em lugar de memória olfativa, opto por memória da olfação, sendo a olfação termo utilizado por Alain Corbin (1987) em sua pesquisa historiográfica sobre os cheiros, traduzida para o público brasileiro como a obra Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX.
Corbin fará menção a uma revolução olfativa operada a partir de meados do século XVIII. É essa conjuntura que irá desenhar, a partir de diferentes discursividades, compreensões da olfação ligadas a um movimento estético que concentra sua atenção na sensibilidade humana inescapável às imposições dos odores. Diferente da visão, fonte de certezas intelectuais (CORBIN, 1987, p. 111) – cujo papel incontestável se manifestava nos tribunais –, o olfato era o sentido que melhor revelaria as particularidades, as experiências de intimidade, que vão da sensibilização poética com o cheiro de uma flor aos odores dos excrementos corporais, ambos ligados a processos de individualização das práticas sociais vivenciados pela sociedade europeia daquele século. O autor recupera, em sua argumentação, testemunhos, fatos históricos, arquivos médicos e textos literários pelos quais é possível compreender o alcance dessa revolução perceptiva. Há, ao longo de sua obra, uma demonstração de como o discurso médico e higienista suscitou um ideal de desodorização, com vistas a impedir os miasmas, a putrefação do ser, como forma de demonstrar uma verdadeira repulsa aos cheiros que emanavam do social.
Diferentemente da memória olfativa, presa a uma suposta transparência, percepção empírica e automática (como se o cheiro fosse resultado exclusivo das experiências individuais), compreendo que a memória da olfação seria passível de atualizações, conforme Cobin demonstra em sua leitura do século XIX, a partir do excerto a seguir:
A olfação se acha engajada no processo de refinamento das clivagens e das práticas sociais, refinamento esse que caracteriza o século XIX. O jogo sutil das atmosferas individuais, familiares e sociais contribui para a ordenação das relações reguladas como repulsas e afinidades, permite sedução, dispõe do prazer dos amantes e participa, ao mesmo tempo, do novo recorte do espaço social (CORBIN, 1987, p. 181).
Nesse sentido, a memória da olfação faz ressoar, por exemplo, a gestão burguesa do olfato. Corbin menciona o desenvolvimento de todo um sistema de esquemas de percepção baseado no primado da suavidade, em contraposição ao odor proveniente do suor do trabalhador braçal, do labor próprio às camadas populares. Essa relação pobreza-cheiro, que vem sendo historicamente significada e atravessada pelos modos de interpretação do espaço, potencializa nossas compreensões.
No imaginário social, o cheiro de pobre tem limites bem definidos: a favela, os andaimes, o galpão de carga e descarga, prostíbulos, lixões. Cheiro presente nas aglomerações em ônibus, metrô, ou quaisquer meios de transportes das classes populares. O cheiro do suor resultante de um dia de trabalho pesado, braçal, ou da moradia que pode sintomatizar carência de saneamento básico, como marca de um estrato social. Essa normatização do cheiro como mera percepção sensorial transparente do espaço e dos sujeitos é administrada pelo imaginário como bom ou ruim, aprazível ou repulsivo, como suave ou insuportável.
Isso me leva à especificidade da imbricação cheiro-espaço. Ela coloca em jogo o entendimento de que, também, o espaço faz parte de uma evidência que supõe uma possível neutralidade (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2019). A evidência do espaço constitui-se como um gesto epistemológico formulado ao lado da evidência do sujeito e da linguagem, ao qual a autora elucida da seguinte maneira:
O que está em jogo numa visão discursiva materialista, portanto, é o mundo não enquanto espaço físico em si, independente do sujeito, mas enquanto espaço apreendido e significado por ele, do qual ele é dependente. Isso nos conduz inexoravelmente à questão da percepção sensível, a uma definição do papel da linguagem na constituição histórica da relação entre sujeito e objeto, entre a matéria sensível do corpo (sua capacidade sensorial) e do espaço (qualidade dos objetos) (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2019, p. 137).
Reitero minha filiação ao que diz Rodríguez-Alcalá, na compreensão de que a apreensão sensorial do espaço e do corpo não se dá narcisicamente. Mais do que estímulos químicos ou físicos, essa apreensão está “afetada (mediada) pelas significações anteriores atribuídas a esses objetos na história, sedimentadas numa memória perceptiva e espaço-temporal de natureza social e política” (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2019, p. 138).
A percepção sensível do aroma, como não-transparente à ordem simbólica, se opõe a uma mera tradução de sentimentos, impulso sensorial centrado no sujeito, sendo resultado, todavia, de processos simbólicos cuja divisão dos sentidos se opera na história. Isso nos leva, invariavelmente, aos trabalhos de Suzy Lagazzi (2013, 2017, 2019), que reforçam a premissa segundo a qual é a linguagem a materialidade do discurso, devendo ser encarada em suas diferentes materialidades significantes, entre elas, o cheiro. Ou ainda, à noção de abertura do simbólico (ORLANDI, 2012), pela qual ficam demonstradas as diferentes formas materiais significantes, quer sejam verbais ou não.
Apesar de todas as dificuldades apresentadas pelo cheiro (efemeridade e invisibilidade), na construção de Parasita, ele é apresentado ao espectador como elemento central para o desenvolvimento da narrativa. Ele delata, individualiza, singulariza e, ao mesmo tempo, congrega o núcleo familiar pela emanação singular da casa. O cheiro (des)constrói divisas e relações sociais, (des)organiza sentidos e, no fio do audiovisual, ameaça a manutenção dos cargos conquistados, marcando permanentemente as ações tomadas pelo pai da família ao final do filme.
As cenas descritas anteriormente, porém, não são as únicas em que o cheiro toma corpo. Nos fotogramas abaixo, o cheiro evidenciado na fala descortina repulsas veladas e, segundo o chefe da família Park, passa dos limites (limite é, aliás, condição sine qua non na relação com seus empregados). Mas o cheiro, aqui e ali, extrapola. O odor, que atravessa a janela do carro e alcança o patrão, ultrapassa os limites sociais aceitáveis. Seria o odor de pano fervido? O cheiro de homem velho? O hálito do metrô? Não há uma única ancoragem entre o cheiro do Sr. Kim e um sentido que lhe dê conta. Há, contudo, uma profusão de sentidos que mescla sujeitos, espaços e condição social.
Momentos antes de encontrar-se escondido embaixo da mesa (na série de fotogramas acima) aqui estava o Sr Kim: na sala dos patrões, aproveitando de toda a comida e bebidas caras, enquanto os donos da casa estavam ausentes. Neste momento, uma tensão se avizinha. Um possível confronto entre o pai e a mãe Kim, aquele que seria o primeiro embate do casal. Mas tudo não passou de uma troça.
O filme
O cheiro
Os limites