[...] parece-nos necessário procurar, na história religiosa e jurídica, os elementos que contribuíram para estruturar a subjetividade e definir a própria ideia de sujeito. (HAROCHE, C., Querer dizer, fazer dizer, 1992)
A dança do Congo em Vila Bela[1], Mato Grosso, sob a forma de uma dramaturgia festivo-popular, de modo estilizado, compõe-se de enredos, cantos, diálogos, personagens, cores, etc. que, articulados entre si, figuram uma das cenas discursivas definidoras da cidade. Das festas tradicionais comuns à cidade, selecionamos as canções da Dança do Congo, com o objetivo de compreender o modo pelo qual a língua significa o sujeito-festeiro, em formulações, versos que, conforme supomos, não tem entrada no sistema do português-brasileiro.
Pela Análise de Discurso, a partir de Pêcheux (1988; 2004) e Orlandi (2002, 2007, 2008, 2015, 2017), buscaremos compreender como essas canções se inscrevem na discursividade da língua; como esses termos estranhos ao português brasileiro, nos versos do canto, relacionam-se com outros termos; como a sintaxe dos cantos se articula à cena festiva. Esses pontos de nosso interesse, supomos sustentar os processos de identificação do sujeito-vilabelense, do sujeito-festeiro. Ou seja, essas questões colocam em jogo a relação entre a língua e o sujeito que a produz, o sujeito que a fala.
As pesquisas de Pêcheux (1981), Haroche (1992), Orlandi (2007) e Rodriguez-Alcalá (2004) apontam para o conceito de sujeito, construído conforme a ordem do Estado Moderno, instituição social de direitos e deveres, em oposição ao sujeito da Idade Média, determinado pela Igreja. No confronto entre língua/ideologia, pelo mecanismo de antecipação, o sujeito coloca-se no lugar do outro/Outro, conforme Orlandi (2015, p. 40), em processos imaginários de projeções resultantes das formações discursivas: “É bom lembrar: na análise de discurso, não menosprezamos a força que a imagem tem na constituição do dizer. O imaginário faz parte do funcionamento da linguagem”. (ORLANDI, 2015, Idem) Para a autora, a divisão de sentidos significada pela projeção imaginária, conforme salienta Orlandi, “não brota do nada”.
Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. Ela se constitui nesse confronto do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições. (ORLANDI, 2015, Ibidem)
A formação discursiva define-se como “[...] aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”. (ORLANDI, 2015, p. 41) Assim, os efeitos de sentidos se sustentam em uma posição ideológica determinada, não sendo, portanto, colados às palavras e tampouco dados por si mesmos. Como salienta a autora, a noção de formação discursiva pode ser compreendida como uma regionalização dos dizeres da memória discursiva.
Tais considerações permitem problematizar, no material de leitura, a linearidade dos dizeres na estrutura dos versos e o modo como os dizeres se articulam metonímica e metaforicamente na linearidade linguística dos significantes. Essas considerações se aproximam do que, nós linguistas, denominamos de concatenação (linearidade dos significantes) e concorrência (termos concorrentes entre si), ou ainda, de constituição e organização, em termos discursivos.
Os cantos das festas tradicionais[2] de Vila Bela – MT apresentam uma recorrência de palavras não dicionarizadas, termos não reconhecidos no sistema do português-brasileiro, mas que, articulados no verso, entoados linearmente, produzem o efeito de pertencimento desse sistema. Trazemos abaixo a letra das canções da festa do Congo:
CANTO I
Sai, sai o ingome sai
Saia do caminho
Sai engomerê.
CANTO II
Chegou, chegou enganaiá
Chegou, chegou enganaiá
Pra fazer a nossa festa de São Benedito
Pra fazer a nossa festa de São Benedito.
CANTO III
O seu Manoel mandou me contar
Como é a cana do canavial
Canavial do sobre tenente
Cada pé de cana
Ô bumba auê
Bumba xerê
Passeia na praia
Mantingombê, mantingombê
(Grifos nossos – http://projetoparaleloquinze.blogspot.com.br )
As formulações em grifo, supostamente os termos estranhos ao sistema do português-brasileiro, produzem o efeito da relação entre o português-brasileiro e as línguas africanas, faladas pelos negros vilabelenses, pelo funcionamento discursivo da memória da língua brasileira mesma. Como se vê, os verbos transitivos indiretos, como saia / chegou / mandou / passeia, de uso predominante na relação sintática entre sujeito / verbo / objeto no português-brasileiro funcionam pela sintaxe da língua nacional e, ao mesmo tempo, da língua de Estado, conforme Orlandi (2012), Payer (2006) e Almeida (2012).
Considerando[3] essas formulações[4], tidas como sem entrada no léxico do português-brasileiro, perguntamos pelo modo como funcionam e se conjugam nas canções festivas do Congo, produzindo sentidos. Nos recortes abaixo, cuja sintaxe conjuga o verbo a outros termos, temos:
- sai sai o ingome sai
- sai engomerê
- Chegou, chegou enganaiá pra fazer a festa de São Benedito
Em sai o ingome , sai engomerê, chegou enganaiá percebermos um deslizamento metafórico na repetição/substituição paradigmática do termo ingom+e / engom+merê / engan+naiá, produzindo o efeito das derivações lexicais próprias de um sistema linguístico. Ou seja, esses termos apresentam-se como decorrência de um termo primitivo. Esses termos, sem reconhecimento no sistema do português-brasileiro, compõem o verso das canções festivas como que funcionando como uma língua outra, com suas articulações, flexões e tudo o mais.
Nos versos - engomerê sai; - João sai; - sai João; a sintaxe funciona igualmente na relação entre um nome e um verbo, como na língua portuguesa. Ao dar ao termo estranho ao sistema do português-brasileiro o mesmo estatuto dos termos em português, como nas sequências discursivas - engomerê sai; - João sai; - sai João; o canto dá visibilidade ao efeito de articulação entre diferentes sistemas de língua. O mesmo pode ser visto em outros versos do canto, como em Chegou, chegou enganaiá pra fazer a festa de São Benedito, parafraseando os versos abaixo:
- Chegou, chegou Maria pra fazer a festa de São Benedito
- Chegou, chegou Joaquim pra fazer a festa de São Benedito
- Joaquim chegou pra fazer a festa de São Benedito
- Alguém chegou pra fazer a festa de São Benedito
O termo enganaiá funciona como nome em relação ao verbo chegou, cuja sintaxe repete, enquanto refrão nas canções. Por esses deslizes que se repetem nas canções, perguntamos pela relação entre o agente do verbo e o sujeito que canta, o sujeito-vilabelense. Esses termos, supostamente de outra língua, funcionam na linearidade significante do português-brasileiro, inscrevendo, na memória do português, o imaginário de uma tradição outra que acaba por fundir-se à tradição brasileira. Os versos que articulam o português e essa língua outra apontam também para a memória africana no português.
Trata-se da captura do sujeito vilabelense pelo imaginário dessa língua outra, a língua africana, da qual ele não sabe o sistema, mas imagina saber, significando-se numa relação de contradição na ordem da língua nacional brasileira, na relação com termos supostamente africanos. A partir de Pêcheux, pode-se afirmar que as formulações das canções vilabelenses funcionam como um estranho familiar (PÊCHEUX, 1979), pelo fato de articularem a língua de Estado e formulações de uma língua outra.
O efeito de africanidade produzido pelas canções constitui os sentidos para a cidade de Vila Bela, pela festa do Congo, que vai construindo o imaginário de sua tradição.
Em Canavial do sobre tenente / Cada pé de cana / Ô bumba auê / Bumba xerê / Passeia na praia / Mantingombê, mantingombê temos formulações intransitivas, que se articulam com o todo da canção. A relação significante-a-significante se dá pelo jogo imaginário, produzindo os efeitos de africanidade (pelo imaginário) latentes nas canções, como a memória discursiva da língua dos antepassados vilabelenses. As formulações se articulam discursivamente pelo imaginário da língua africana no verso das canções em português.
As formulações O Bumba auê / Bumba xerê / Mantingombê funcionam na sintaxe do português-brasileiro como marca, etiqueta, pista, indício de uma memória de africanidade, construída pelo imaginário. Essas formulações se historicizam enquanto lugar de memória da tradição africana, pela/na língua, cujo funcionamento discursivo opera pelo imaginário[5] em relação à festa do Congo.
Em en-ga-nai-á / en-go-me / en-go-me-rê / O bum-ba au-ê / Man-tin-gom-bê temos os traços[6] da tradição africana, funcionando pela memória da/na língua portuguesa, que não coincide necessariamente com português-brasileiro. As regularidades fonéticas dos termos acima, que se repetem nas canções, promovem a rima, sem significação alguma, apenas como acorde, acessório, do canto. No entanto, pelo imaginário das línguas africanas, esses termos funcionam como um coro, um refrão que marca o ritmo, reitera a memória de uma língua outra na língua nacional brasileira: engomerê, Pererê, enganaiá / aiá, Bumba auê Bumba xerê, etc.
A dança do Congo é parte de um conjunto de festas que compõe a Festança Vilabelense, realizada anualmente na segunda quinzena do mês de julho. A dança do Congo é encenada desde o início do século XIX[7], como lugar de resistência dos negros que viviam sob o regime escravocrata[8]. Vindos da África Central e trazidos em viagens fluviais pelo Rio Madeira, os negros chegaram para trabalhar nessa recém Capitania de Mato Grosso.
A prática econômica de exploração da terra era o que sustentava o interesse da Coroa Portuguesa em expandir o território, objetivando a extração dos principais recursos minerais existentes nessa região, como o ouro. Desse imaginário que sustentava a corrida para o “oeste” nos tempos do Brasil colônia, os portugueses instalaram-se às margens do Rio Guaporé, divisa com a Bolívia e fundaram, em 1752, a primeira Capital da Capitania de Mato Grosso: Vila Bela[9], cidade planejada em Lisboa e que funcionou como ponto estratégico da Coroa portuguesa para impedir os avanços dos espanhóis pela Bolívia.
Como primeira capital[10] do Estado, ora é reconhecida como a primeira cidade com plano urbanístico de fundação, e ora como localidade mais ocidental das ações de Portugal[11]. Vila Bela (historiadores, antropólogos e linguísticas), durante certo período, entre o século XIX e XX, encontrou-se no esquecimento político-administrativo, após a transferência da capital para Cuiabá. Com um decreto de âmbito regional que libertava os negros da escravidão, por volta de 1832, os “festeiros” vilabelenses encontraram liberdade à prática das celebrações comunitárias que “rememorava” as cenas do período da escravidão.
Atualmente, através da encenação festiva, a cidade sustenta efeitos que evidenciam a tradição cultural. Esses sentidos de africanidade vão do turismo, práticas culinárias, bebidas, festas de cunho religioso, até às encenações de danças, como a dança do Chorado e a dança do Congo, por exemplo. A dança do Congo é definida por Andrade (1959, p. 17) como “[...] uma dança dramática, de origem africana, rememorando costumes e fatos da vida tribal”. Assim, ao ser reencenada, nos cantos e danças, a festa do Congo mobiliza, pela língua, a memória de uma tradição que insiste em se manter. No curso dessas considerações, observamos que é na língua do português-brasileiro que a memória da tradição africana retorna.
Na dança do Congo em Vila Bela, os dançarinos protagonizam papéis e personagens numa relação hierárquica. A marcha do cortejo dita o ritmo em data específica do ano: segunda quinzena de julho. Nesse momento, um grupo de festeiros, com roupas coloridas, apropriadas, empolgado, sempre acompanhado por turistas e adeptos da festividade local, sai de madrugada para as ruas da cidade ao som de chocalhos e canções, anunciando o amanhecer e a festança local. O ritmo, o compasso e as formulações ditadas pelos dançantes do Congo convidam e conduzem os festeiros de São Benedito à igreja do centro, em frente à praça central da cidade, sob os efeitos de reverência ao santo padroeiro da dança, o próprio São Benedito.
Após a missa, enfim, a tão esperada apresentação: a festa do Congo. Com a cena das batalhas entre os reinados e o Bamba, dentro de uma grande tenda levantada do lado de fora da igreja, centro da praça, os festeiros empolgam os expectadores, com um misto de euforia e curiosidade. A festa do Congo constrói cenários, tempo e espaço, pela memória, numa injunção entre o imaginário do que seja africano e/ou vilabelense. Inscrições distintas, mas que se cruzam, se misturam no desenvolvimento da dança, através dos personagens, da plateia, no canto. Vila Bela encena a relação entre Brasil e África na Dança do Congo.
O próprio festeiro desconhece os termos que canta, profere-os mnemonicamente sob a crença de reatualizar, na canção, a história de seus antepassados. Essa cena, a da Dança do Congo, conforme agendada no Calendário Festivo da Cidade enquanto uma intervenção do Estado, produz o efeito de produzir uma história de identificação e de luta para não deixar memória/língua morrer. Resistência é o nome disso, nos termos dos Titãs. Essa dança encena uma batalha que se inicia com o desafio do rei do Bamba a casar-se com a filha do rei do Congo e termina com uma pitada de crítica ao atual cenário político brasileiro. O rei do Congo, no caso, sempre ganha.
Turistas, pesquisadores e moradores locais disputam os espaços que dividem o salão de apresentações. Fotos, gravações, filmagens, imprensa de rádio e TVs regionais, nacionais registram o acontecimento da festa do Congo, que, conforme o Calendário da cidade, repete-se ano-a-ano. Ao final do dia, após o almoço comunitário, o retorno dos festeiros traça o trajeto de ida: os dançantes acompanham os festeiros de São Benedito até suas residências