1. Apresentação: os instrumentos técnicos e a constituição das disciplinas científicas
A exploração das novas tecnologias de escrita como subsídio para as pesquisas sobre as ambiências urbanas nos remete a uma reflexão mais ampla, no campo da história das ciências, sobre o papel dos instrumentos técnicos na constituição das disciplinas científicas. Em sua discussão sobre a Análise do Discurso instituída por Michel Pêcheux na França, em finais dos anos 1960, Paul Henry nos diz que o estabelecimento de uma ciência necessita de instrumentos (“materiais” ou “abstratos”), que ela procura nas práticas científicas já estabelecidas ou nas práticas técnicas (cf. HENRY, 1997, p. 16-17). O autor traz o exemplo da balança, que teve uma primeira utilização técnica no comércio até tornar-se, a partir de Galileu, objeto da teoria das balanças, que integra a teoria física. Produziu-se assim, afirma Henry, uma “homogeneidade” ou adequação entre o objeto da disciplina e seus métodos. Esse “empréstimo” de instrumentos exige sempre, continua o autor, retomando Thomas Herbert (pseudônimo de Pêcheux) ([1966] 2011), um trabalho de apropriação, de reinvenção, de reelaboração:
[...] cada vez que um instrumento ou experimento é transferido de um ramo de ciência para outro, ou a fortiori de uma ciência para outra, este instrumento ou este experimento é de algum modo reinventado, tornando-se um instrumento ou um experimento desta ciência em particular, ou deste ramo particular de ciência. [...] o ajustamento de um discurso científico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos pela teoria. É isto que faz da atividade científica uma prática. (ibid., p. 17)
As práticas científicas, por sua vez, não se exercem fora de uma prática filosófica (ibid.). A (re)elaboração dos instrumentos sobre os quais se apoia uma disciplina, portanto, pressupõe sempre uma reflexão, mais ou menos consciente, sobre a natureza de seu objeto, bem como uma postura frente ao conhecimento, de modo geral.
É a partir dessas considerações que nos perguntamos: qual é o objeto das pesquisas sobre as ambiências urbanas e como esse objeto direciona a (re)elaboração de instrumentos para produzir uma “homogeneidade” com seu método?
Definida como “espaço-tempo qualificado do ponto de vista sensível” (cf. THIBAUD, 2004; 2011), a noção de ambiência convoca fenômenos perceptivos que põem em relação, sob uma forma mais complexa do que uma simples somatória, os sujeitos, o espaço sensível e a significação. Uma ambiência é uma unidade sensorial, na medida em que concebe o espaço de vida humano não como o espaço físico em si, já dado, mas como o espaço enquanto apreendido pelo sujeito, através da “concretude” de seu corpo e de sua faculdade sensorial. Essa concepção põe em causa o dualismo positivista clássico sujeito/objeto, junto com outros que lhe são correlatos, como corpo/espírito e objeto/qualidade (cf. THIBAUD, ibid.; DEWEY, 1980, p. 210). Uma ambiência é também uma unidade simbólica (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2013a, 2013b, 2014), uma vez que, como afirma Dewey, a apreensão sensorial de objetos e acontecimentos em uma situação dada é indissociável das significações anteriores a eles atribuídas em um contexto social e histórico particular (cf. DEWEY apud THIBAUD, 2004, p. 242)[1].
É a complexidade desse novo objeto intrinsecamente heterogêneo aquilo que orienta a reapropriação de ferramentas tradicionais de notação do espaço disponíveis no campo da pesquisa arquitetônica e urbana, a partir da incorporação de novas tecnologias de registro (foto-, áudio-, vídeo-) gráfico e de narrativas sobre o lugar e o cotidiano urbano. Podemos mencionar diversos métodos exploratórios, tais como os relatos em primeira pessoa, os percursos comentados, a observação recorrente, a reativação sonora, a etnografia sensível e, mais recentemente, o corte urbano[2]. Sua elaboração resulta do esforço metodológico para dar conta dessa justaposição de elementos estáticos e dinâmicos, ao mesmo tempo técnicos e sensíveis, de diferentes dimensões e escalas que estão em jogo em uma ambiência (formas construídas, impressões sensoriais, movimento do corpo, afetos, discursos...).
O objetivo deste artigo é apresentar uma discussão teórica sobre a dimensão heurística desses dispositivos descritivos – entendidos como dispositivos de conhecimento –, a partir de uma reflexão sobre o corte urbano e o paradigma epistemológico que Carlo Ginzburg chamou de “indiciário” (cf. RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2011)[3]. Tal discussão foi realizada no âmbito de uma pesquisa de campo interdisciplinar sobre o problema da coleta de lixo doméstico na cidade de São Paulo, Brasil[4].
Buscaremos responder às seguintes perguntas: quais são as questões teóricas envolvidas na elaboração do corte, tendo em vista as implicações epistemológicas da noção de ambiência? Como se define a consistência – a “homogeneidade”, a adequação – do instrumento em relação a esse objeto?
Começaremos nossa exposição com uma breve apresentação do corte e da pesquisa de campo realizada, a fim de situar as questões propostas.
2. O “potencial sinóptico” do corte e as pesquisas sobre o espaço urbano
O corte, ou transecto, de acordo com a definição de Marie-Claire Robic, designa para os geógrafos:
...um dispositivo de observação de terreno ou a representação de um espaço, ao longo de um traçado linear e segundo a dimensão vertical, destinado a pôr em evidência uma superposição, uma sucessão espacial ou relações entre fenômenos: corte geológico, corte (ou transecto) biogeográfico (tradução nossa)[5].
Tal sistema de notação vem sendo desenvolvido desde o século XIX como um instrumento para o estudo de fenômenos naturais e sociais, tendo-se tornado recentemente um modo usual de descrição gráfica de geólogos, geógrafos e paisagistas. Entretanto, ele permanece ainda raramente utilizado para o estudo das cidades (TIXIER, 2016, p. 133)[6].
Quando aplicado em escala urbana, o corte é tradicionalmente um modo de descrição estático e técnico dos dados construtivos, como indicado por Tixier (ibid.). Entretanto, de acordo com o mesmo autor, o instrumento ganha vida ao sugerir uma sincronia de gestos práticos, que oferecem uma abertura para a narrativa – para uma multiplicidade de narrativas possíveis (ibid., p. 132). Tal abertura permite a inscrição de textos, fotografias, desenhos e outras formas através das quais um lugar é enunciado, às quais temos acesso mais frequentemente in situ ou en parcours (ibid). A sensibilidade à narrativa do habitante, à sua maneira de enunciar o lugar, com suas ambiências e práticas, é uma questão central para a compreensão da “fábrica cotidiana da cidade”, na expressão do autor (ibid.).
O objetivo geral da pesquisa realizada em São Paulo foi elaborar um instrumento com as características acima descritas, através da incorporação de técnicas relacionadas ao transecto, ao percurso sensível e à narrativa de lugar. O corte foi pensado, de um lado, para operacionalizar metodologicamente uma aproximação entre os trabalhos relativos às ambiências arquitetônicas e urbanas e as pesquisas ambientalistas; de outro lado, para articular, em termos práticos e operacionais, os campos da pesquisa acadêmica e da gestão urbana e/ou territorial (cf. TIXIER et al., 2011). Tratou-se de explorar pontos de encontro possíveis entre perspectivas tradicionalmente distanciadas entre si na abordagem da cidade, nas quais estão em jogo:
É para interrogar esse gesto – ao mesmo tempo multifocal, multidisciplinar e multi-institucional – que se propôs explorar o “potencial sinóptico” do corte, característica assinalada pelo urbanista Patrick Geddes, em inícios do século XX. Como afirmam Tixier, Melemis e Brayer (2011, p. 247), o corte permite:
...inscrever em filigrana, em uma representação gráfica e estática, as narrativas de vida, bem como as percepções de ambiências. O corte não implica dominância disciplinar, nem exaustividade de dados para um lugar; muito pelo contrário, ele seleciona tudo o que se encontra em sua linha e autoriza, precisamente, os encontros entre as dimensões arquitetônicas, sensíveis e sociais, entre o que diz respeito ao privado e o que diz respeito ao público, entre o que é móvel e o que é construído, etc. (tradução e grifos nossos)
Gostaríamos de destacar alguns aspectos dessa proposta, que giram em torno das ideias centrais de heterogeneidade e, ao mesmo tempo, de relação na definição do que seja o espaço urbano, ou mesmo o espaço de vida social, de modo geral. Mais especificamente:
É precisamente em virtude desses aspectos que se define o potencial sinóptico do corte na utilização proposta por Geddes. Como nos dizem Tixier, Melemis e Brayer (ibid.), é a capacidade de co-apresentação e de co-concepção, em termos disciplinares, dessa ferramenta gráfica aquilo que contribui para tornar visíveis relações entre fenômenos heterogêneos relativos à sociedade e ao espaço. No caso específico do urbanista escocês, estão em jogo as relações entre as formas de vida coletiva humana e os quadros da geografia física:
No início do século XX, o urbanista escocês Patrick Geddes havia insistido no potencial ‘sinóptico’ do corte, isto é, a capacidade de tornar visíveis as relações, resultado de longos períodos históricos e observáveis no presente, que ligam as formas de vida coletiva humana aos quadros da geografia física. Sua utilização desta projeção gráfica visava produzir o encontro de perspectivas disciplinares diferentes em uma única representação visual. (ibid., p. 246, tradução e grifos nossos).
Devemos perguntar-nos, em relação à nossa pesquisa: quais são os elementos relacionados pelo corte em uma metrópole como São Paulo, tendo em vista o problema da coleta de lixo na cidade?
3. A cidade de São Paulo: aspectos ambientais e sensíveis da gestão do lixo doméstico
A pesquisa procurou reunir questões arquitetônicas, sociais, ambientais e sensíveis relacionadas ao problema do lixo doméstico em São Paulo. Focalizou-se o percurso diário da coleta do lixo, do centro da cidade até o aterro sanitário. Foram selecionados quatro bairros ao longo desse percurso, de aproximadamente 35 quilômetros de extensão (cf. OKAMURA, 2011).
O objetivo foi compreender o impacto da questão do lixo na ambiência e no meio-ambiente nos diversos e heterogêneos distritos atravessados pela coleta. Como lidam os habitantes com o lixo? Tem este um impacto negativo aos arredores (mau cheiro, atração de animais ou poluição do ar)? Como é o serviço público de coleta no lugar? Existe um trabalho de seleção e reciclagem para minimizar o impacto ambiental? (cf. OKAMURA, ibid.; MASSON e BRAYER, 2010).
LUGARES SELECIONADOS DA PESQUISA
Figura 1: Mapa da zona leste de São Paulo. A linha destacada em negrito representa o caminho seguido pelos caminhões de coleta, do transbordo (#2) até o aterro sanitário (espiral no final da linha à direita) (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).
Figura 2: Bairros selecionados, com destaque (em negrito) das linhas dos cortes realizados (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).
O trabalho esteve organizado em três etapas[7]:
Foram coletados, de um lado, dados relativos ao ambiente e às formas construídas, levando em conta os documentos existentes (mapas, medidas oficiais, projetos técnicos e de pesquisa) e fotos feitas pela equipe. De outro lado, foram coletados dados relacionados às práticas e às narrativas dos moradores. A equipe entrevistou moradores, especialistas locais, administradores, funcionários; visitou as estações de tratamento de lixo e o aterro sanitário, e acompanhou os veículos de coleta de lixo (cf. OKAMURA, ibid.; MASSON e BRAYER, ibid.).
O primeiro passo foi identificar as questões mais relevantes que emergiram desse conjunto heterogêneo de dados, relacionadas ao espaço, às práticas, à atmosfera, ao ambiente, às políticas. Foram em seguida selecionados os dados considerados mais representativos para cada uma dessas questões. A montagem desses dados resultou, assim, em um instrumento “híbrido”, que relacionou as características da morfologia física do lugar (das moradias e do espaço público da rua), a trechos das falas das entrevistas e às práticas sociais (cf. MASSON & BRAYER, ibid.).
ETAPAS DA MONTAGEM DOS CORTES
Figura 3: Etapas: 1) colagem de fotografias; 2) desenho de formas e contexto; 3) inserção de pessoas, práticas e falas (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).
Figura 4: Corte #1 – Vila Mariana: corte completo e zoom. O comprimento dos cortes impressos foi superior a 2,5 metros (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).
A última etapa do projeto consistiu na realização de um ateliê público, que convocou os sujeitos concernidos na pesquisa (cientistas, administradores, técnicos, moradores) para tomarem conhecimento dos cortes realizados e dispostos sobre uma mesa longa[8]. Em um contraponto com o ritual da mesa redonda, observa Amphoux (2011), a mesa longa é uma experiência mais informal, que incentiva as pessoas a falarem de maneira mais espontânea que nas situações de entrevista ordinárias. Ela permite, também, exercer um olhar panorâmico sobre os lugares recortados e, ao mesmo tempo, fazer um zoom sobre detalhes específicos (ibid.). A experiência possibilita, assim: a) discutir coletivamente os resultados da pesquisa; b) intervir na própria (re)escrita dos cortes, acrescentando ou riscando elementos, em um gesto próximo daquele do grafiteiro (ibid.); c) identificar as questões polêmicas, e d) inventariar ações possíveis (cf. ibid.; TIXIER, 2016).
Figura 5: “Mesa longa” sobre os cortes realizados. São Paulo, Julho de 2009 (Imagem extraída de AMPHOUX, 2011, p. 155).
Não é nosso interesse neste artigo deter-nos nos desafios metodológicos e técnicos envolvidos na construção do corte, nem nas discussões durante a “mesa longa” ou em seu impacto no desenho de potenciais projetos urbanos[9]. Nosso objetivo é abordar uma questão mais geral, já enunciada: qual é o gesto teórico que orienta a elaboração de um instrumento como o corte, tendo em vista as implicações epistemológicas da noção de ambiência? Isto é:
4. O dispositivo do corte e o “método policial”
Tendo presentes as observações que havíamos feito sobre o “potencial sinóptico” do corte, propomos aqui fazer um desvio e caracterizar a elaboração desse instrumento a partir de uma imagem: a do método policial. Isto é, a imagem do detetive que coloca em um mesmo quadro — um mesmo campo visual —, umas ao lado das outras, pistas dispersas e aparentemente desconexas, para visualizar relações entre elas e chegar ao autor do crime. Podemos pensar, ainda, na imagem do médico que, em um procedimento similar, registra os sintomas do paciente em um quadro para encontrar a doença (à maneira do Dr. House do seriado televisivo). O que está em jogo em ambas as posturas, cabe notar, é a questão do método e do olhar, que permite ir além das evidências para estabelecer, entre indícios dispersos e aparentemente desconexos, regularidades (pensamos aqui nas noções de dispersão e de regularidade do método arqueológico de Michel Foucault). De maneira análoga, podemos considerar os diferentes fatos heterogêneos que conformam o espaço urbano como “pistas”, como “sintomas” de nossas formas de habitar, que estão dispersos em escalas e instâncias institucionais diferentes e que o corte permite juntar, na tentativa de visualizar relações entre eles e poder interpretar — dado que seu sentido não é evidente.
Dentre as diversas e complexas questões envolvidas na (re)elaboração dessa ferramenta metodológica, um ponto central, em nosso entender, é determinar o estatuto desses fatos que ela permite relacionar, bem como a natureza da unidade que resulta dessas relações. Isso nos remete às observações sobre a questão do olhar na análise da experiência cotidiana que apresentamos a seguir.
5. A opacidade do espaço: entre a evidência da imagem e o descentramento do olhar
Não é uma atividade usual dizer: ‘Bom, hoje à noite, eu vou examinar aquele canto do teto’[10]. É a partir dessas palavras de Harvey Sacks que Jean-Paul Thibaud e Nicolas Tixier discutem, no artigo “L’ordinaire du regard” (1998), uma questão central na análise da experiência ordinária, objeto dos estudos sobre as ambiências. Trata-se da dificuldade da descrição da banalidade do espaço urbano, dos lugares comuns da vida de todos os dias – isto é, detalhes que se apresentam como insignificantes e anódinos, mas que são indícios reveladores de formas de sociabilidade que caracterizam a cidade.
De acordo com os autores, essa dificuldade não decorre do fato de esses detalhes não serem concretos ou não estarem expostos à visão, mas do fato de serem, precisamente, visíveis demais, familiares demais (como o “canto do teto” da epígrafe de Sacks), não sendo em virtude disso notados. A questão que se coloca para essa descrição é, portanto, afetar as condições do olhar, de forma a questionar esse efeito de evidência e de naturalidade. Isso leva a uma reflexão sobre o próprio lugar do observador e sobre o papel da memória na prática da observação.
É esse o ponto central que os referidos autores propõem abordar no artigo a partir de uma análise da obra do escritor Georges Perec. Mais do que a imagem, afirmam, é a questão do olhar aquilo que está em jogo nas descrições “perecquianas” do espaço público urbano. Elas produzem um descentramento do eixo do olhar que coloca à prova a evidência do olhar do habitante – desestabilizando, assim, os hábitos perceptivos e o efeito de familiaridade com o mundo.
CORTE #1 – VILA MARIANA