Gramática, escrita e cidade

A instrumentação das línguas através da criação da escrita e da elaboração de gramáticas e dicionários é uma tecnologia urbana. Ela surge, historicamente, associada às necessidades políticas e econômicas que a administração das cidades coloca.

É esse o caso da escrita, inventada em 3.000 anos antes de nossa era, na cidade de Uruk, na antiga Suméria (Mesopotâmia), para enfrentar as necessidades econômicas de contabilidade e de gestão de uma administração confrontada com tarefas mais complexas, ligadas a fatores como a densificação do habitat, a existência de índices de organização quase industrial do trabalho, a construção de arquitetura monumental (templos, prédios com função econômica).

É também esse o caso da gramática grega na Antigüidade ou da difusão massiva da gramática greco-latina no Renascimento, no contexto do processo de urbanização operado a partir de finais da Idade Média na Europa, e dos fatores políticos, econômicos e sócio-culturais associados (a formação dos Estados nacionais; o desenvolvimento do capitalismo mercantil; a demanda pelo acesso à cultura letrada da nova classe burguesa, entre outros). Devemos levar em conta também a gramatização das línguas ameríndias nesse período, a partir do mesmo modelo greco-latino, que esteve associada à fundação de cidades nos novos territórios conquistados pelos europeus.

Foi em núcleos formadores de cidades (Piratininga, Salvador) que a produção gramatical sobre as línguas indígenas durante o período colonial se desenvolveu no Brasil. Ao lermos as cartas dos jesuítas, vemos que há um paralelo entre as necessidades de fixar a língua, pela escrita e pela gramática, e de fixar o índio, pelo seu assentamento em povoados, uma vez que estavam lidando com línguas de tradição oral (sujeitas, portanto, a uma enorme variabilidade), de sociedades semi-nômades. Limitar a mobilidade da língua e de seus falantes era um meio para exercer o controle político sobre estes, finalidade do trabalho gramatical realizado na época.

Quanto à gramatização do português no século XIX, a mesma esteve igualmente vinculada ao crescimento urbano nessa época e aos fatores decorrentes desse fato: estruturação da instituição escolar e de outras instituições administrativas, ampliação da cultura letrada e do público leitor, entre outros.

A gramática e o dicionário funcionam como lugares em que se constrói a imagem da cidade enquanto lugar de civilização e de escolarização, que fazem parte do imaginário do sujeito urbano, cidadão do Estado moderno, e do ideal de língua a ele associado. Compreender essas relações entre sujeito e cidade através do imaginário de uma língua urbana e nacional, tal como construídas pela gramática e pela escola, faz parte dos interesses do Labeurb e da elaboração de um instrumento como a bvCLB.

 C.R.-A.

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